Em 11 anos, 94 militares morrem em treinamentos, mais do que o dobro de mortos em missões de paz

Margareth dos Santos Lima, 52, e Carlos Henrique Lima Pinto, 54, perderam o filho de 18 anos durante treinamento militar no Exército - Eduardo Anizelli/Folhapress

Exército, com 82 óbitos, diz que atividade tem risco inerente a sua especificidade bélica

BRUNA FANTTI

“Vá para o hospital do Exército, seu filho está morto.” Essa foi a frase que o professor aposentado Carlos Henrique Lima Pinto, 54, disse ter ouvido ao atender o telefonema de um militar, em sua casa, 24 horas após deixar o filho de 18 anos para o treinamento em um quartel da instituição no Rio de Janeiro.

“Achei que fosse uma brincadeira de mau gosto. Fui dirigindo, com a minha esposa no carro, até o hospital. Ao chegar ao estacionamento, um sargento foi na nossa direção. Olhou para ela e disse: ‘Seu filho morreu, lamento’. Ela desmaiou”, disse Carlos Henrique, emocionado.

O soldado Gabriel Henrique dos Santos, 18, apresentou edema cerebral, infiltração pulmonar difusa, sangramento pulmonar bilateral, distensão de alças abdominais e febre de 43ºC após ser obrigado a realizar intensa atividade física, de acordo com testemunhas, em março de 2023. Ele morreu no primeiro dia de treinamento.

Em investigação interna, o Exército não apontou culpados. Por nota, disse que “todos os fatos ocorridos durante o evento que causou a morte do Soldado Gabriel Henrique dos Santos Lima foram exauridos no Inquérito Policial Militar (IPM), o qual foi finalizado, é sigiloso e encontra-se com o Ministério Público Militar”.

No Brasil, entre janeiro de 2013 e dezembro de 2023, 94 pessoas morreram em treinamentos do Exército, Marinha e Aeronáutica. Os dados foram obtidos pela Folha com as próprias corporações. A maioria dos óbitos em treinamentos (82) ocorreu no Exército. Procurada, a força afirmou que “a atividade militar possui um risco inerente a sua especificidade bélica”.

O número de mortos em treinamentos no período supera o total de mortes de brasileiros em missões de paz desde 1956, quando teve início o envio de militares para participar dessas ações. Foram 42 pessoas, de acordo com dados divulgados no próprio portal do Ministério da Defesa.

Segundo o ministério, a primeira atuação brasileira ocorreu quando o Brasil participou sob a Força de Emergência das Nações Unidas para enfrentar a crise do canal de Suez, no Egito. Desde então, o país enviou cerca de 57,7 mil militares em um total de 60 ações de missões de paz.

Em uma resposta a um requerimento de informação formulado pelo deputado federal Tarcísio Motta (PSOL-RJ), as forças armadas detalharam as causas das mortes.

Entre os óbitos desde 2013 no Exército, 28 ocorreram em acidentes com viaturas; 21, durante atividades físicas; 13, com armamentos; oito, em atividade de afogamento. Também há na lista mortes por queda de árvore (1); choque elétrico (1); paraquedismo (1); e outras nove não especificadas.

A partir do ano de 2020, o Exército passou a descrever, no documento, a graduação, idade e local do óbito do militar. Das 39 mortes ocorridas em treinamento, no Exército, entre os anos de 2020 a 2023, 19 foram de soldados cumpriam o serviço militar obrigatório e tinham entre 18 e 19 anos.

A morte de Gabriel dos Santos está nessa categoria e teve como causa descrita “distúrbio térmico”. Segundo o sistema Alerta Rio, da prefeitura, a máxima registrada no dia em que ele foi submetido a treinamento foi de 41,3ºC.

“Testemunhas afirmam que meu filho foi obrigado a fazer atividade física com casaco, estava um calor insuportável naquele dia. Ele entrou bem, passou na avaliação física, não tinha doenças. Era doador de órgãos, mas 24 horas depois seus órgãos estavam totalmente cozidos. Não teve como fazer nenhuma doação”, disse Carlos Henrique, pai do jovem.

A reportagem teve acesso ao inquérito militar do caso e a testemunhas do caso. No relatório militar que terminou sem apontar responsáveis, o tenente-médico Luis Gustavo Dantas Pagliarini afirma que atendeu o soldado na tarde de sua morte.

Em seu depoimento, ele disse que Gabriel apresentava um quadro de cansaço, pressão arterial elevada e temperatura corporal dentro da normalidade —a ficha médica, assinada pelo próprio médico, afirmar que Gabriel já apresentava 38,7ºC.

O médico do Exército disse que foi Gabriel quem solicitou retornos às atividades depois de apresentar melhora.

O relato é diferente do de outro soldado que acompanhava o jovem na enfermaria e também passava mal. Ele contou à reportagem que o médico os xingou, disse que Gabriel parecia um nerd e determinou que ambos retornassem à atividade.

Em seguida, durante a aula de moral e cívica, um sargento obrigou os alunos a realizarem seguidos exercícios, ocasião em que Gabriel passou a alucinar e desmaiou. Ele foi levado de ambulância ao Hospital Central do Exército. No caminho sofreu uma parada cardíaca e morreu na unidade.

O testemunho do militar que procurou ajuda médica ao lado de Gabriel não consta no relatório do Exército, mas ele já prestou depoimento à Justiça Militar. Ele solicitou à reportagem que fosse identificado, apesar de já ter saído da corporação. Procurado por intermédio da assessoria do Exército, o médico não quis se posicionar.

Para o defensor público da União, Thales Arcoverde Treiger, responsável por acompanhar o caso de Gabriel na Justiça, os números de mortes em treinamentos “impressionam na medida em que as Forças Armadas precisam pensar na manutenção e na preservação da vida das pessoas, sejam militares ou não”.

“O resultado das apurações internas (sobre o caso de Gabriel) não chega a surpreender. Em casos de violência institucional existem parâmetros para uma correta apuração que incluem a apuração por órgão distinto daquele em que os potenciais acusados atuem”, disse.

Ainda sobre o número alto de mortes em treinamentos, o Exército afirmou que “a perda irreparável de companheiros de farda é sempre recebida com grande consternação na Força, que se solidariza e presta todo apoio físico, legal e espiritual às famílias enlutadas. Salienta-se, também, que os óbitos são apurados por meio de Inquéritos Policiais Militares e caso sejam apuradas incidência de crimes de natureza dolosa ou culposa, os autores são responsabilizados perante a Justiça Militar”.

O Exército também acrescentou que “a prevenção de acidentes é regulada pelo Manual Técnico de Prevenção de Acidentes nas Atividades Militares (EB70-MT-11.418). Este manual sistematiza procedimentos, responsabilidades e atribuições para a execução de ações relacionadas à prevenção de acidentes nas atividades militares, a finalidade de identificar, analisar, formular e implementar medidas de mitigação para os riscos encontrados, tornando as atividades executáveis com a classificação de risco mais baixa possível, de modo a se evitar acidentes, principalmente os fatais”.

FOLHA

5 respostas

  1. E todos os mortos em missão de paz faleceram por fatalidades (terremoto, infarto, suicídio), não por fogo inimigo. Na minustah não houve perda humana por fogo hostil.
    Uma vergonha não enfrentarmos inimigo nenhum e matarmos nossos próprios jovens

  2. 2 soldados morreram no treinamento em 1943 para o embarque em 1944 para os campos Italianos.

    Marechal Mascarenhas de Moraes achou um absurdo e disse ser inadmissível alguém morrer em treinamento e que não aceitaria mais isso.

    Pelo visto, o nosso ÚNICO Marechal na Ativa não foi atendido.

  3. a propaganda os fazem sonhar, servir à Pátria, usar com orgulho a farda, aprender algo, incursões nas matas, montanhas, carros de combate, companheirismo, amizades… se é para fazer o novato (uns mais fortes, outros, mais fracos) desistir em treinamento no 1º dia de combate seria de bom juízo a União preparar um seguro de vida bem alto e deixar bem claro que a propaganda é o Céu.

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