Caso da médica da Marinha atingida por bala perdida: há responsabilidade civil do Estado?

O Hospital Naval Marcílio Dias fica no Lins de Vasconcelos, uma região que abriga diversas comunidades

 

Responsabilidade civil do Estado no caso da médica da Marinha atingida por bala perdida: análise jurídica e implicações legais.

Felipe Duque

As testemunhas disseram que era uma manhã aparentemente comum de dezembro de 2024 no Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro.

Salientaram, inclusive, que a Capitão de Mar e Guerra, Médica da Marinha, Gisele Mendes de Souza e Mello, 55 anos, participava de uma cerimônia no auditório da Escola de Saúde da Marinha.

Entretanto, no mesmo momento, a poucos metros dali, no Complexo do Lins, uma operação policial se desenvolvia com o objetivo de prender criminosos envolvidos em roubos de veículos na região do Grande Méier.

Como soa evidente, ninguém poderia prever é que essas situações se cruzariam de forma trágica, isto porque, um projétil atravessou a janela do segundo andar da Escola de Saúde, atingindo fatalmente a Dra. Gisele.

Por oportuno, perceba que o projétil de “bala perdida” configura um caso para discutirmos a responsabilidade civil do Estado.

Assim, questiona-se:

  1. Como determinar a responsabilidade do Estado em casos de bala perdida durante operações policiais?
  2. A quem cabe provar a origem do disparo?
  3. O que fazer quando a perícia é inconclusiva? Isto é, o Estado deve responder mesmo quando não se sabe se o projétil partiu das armas dos policiais ou dos criminosos?

Entendendo o que ficou decidido no Tema 1237 de Repercussão Geral do STF

Houve uma situação similar a descrita com Gisele, que fará com que seja crucial para entendermos se há responsabilidade civil do Estado, no caso. Vejamos:

Em 2015, o Exército realizou uma operação no complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro/RJ.

Iniciou-se uma troca de tiros entre os militares e os traficantes e, infelizmente, João, um morador da comunidade que não tinha nenhuma relação com o tráfico, foi atingido dentro de sua casa por uma bala perdida, vindo a falecer.

Os pais da vítima ajuizaram ação de indenização contra a União.

O Juízo de 1º grau julgou o pedido improcedente por entender que não houve nexo de causalidade já que a perícia foi inconclusiva quanto à origem do disparo, não podendo apontar que a bala que atingiu a vítima tenha partido das armas utilizadas pelos militares.

A sentença foi mantida pelo TRF da 2ª Região.

Os autores interpuseram recurso extraordinário.

O que decidiu o STF? A União foi condenada a pagar a indenização aos pais da vítima da bala perdida?

SIM! De início, o STF entendeu que existe um número alarmante de pessoas vitimadas em razão de ações policiais, conforme se pode constatar nos dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Vale ressaltar, inclusive, que o Brasil sofreu responsabilização internacional devido à extrema violência registrada em operações policiais. Trata-se do caso denominado “Favela Nova Brasília vs. Brasil”, no qual o país foi submetido a um processo devido a 26 homicídios e 3 casos de violência sexual que ocorreram durante duas incursões policiais em 18/10/1994 e 08/05/1995, na comunidade Favela Nova Brasília.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou diversas providências reparativas, dentre elas:

  • O Estado deve fornecer gratuitamente tratamento psicológico e psiquiátrico às vítimas, pelo tempo necessário, inclusive com fornecimento de medicamento;
  • O Estado deve estabelecer mecanismos necessários para, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que aparecem policiais como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente.
  • O Estado deve adotar medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade.

O caso “Favela Nova Brasília vs. Brasil”, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pôde demonstrar, internacionalmente, a letalidade proveniente das operações policiais realizadas no Brasil.

Para além desse fator, evidenciou as violações de direitos humanos vivenciadas pelas vítimas e seus familiares, em razão dos atos violentos, das falhas e da mora na investigação e punição dos responsáveis.

O crescente número de mortos no Estado do Rio de Janeiro durante as intervenções policiais foi o fundamento da ADPF 635, ajuizada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Isso ficou conhecido como “ADPF das Favelas”.

Nesta ADPF, o STF determinou uma série de medidas para redução da letalidade policial e controle das violações aos direitos humanos pelas forças de segurança.

STF. Plenário. ADPF 635 MC-ED/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 2 e 3/02/2022 (Info 1042).

Voltando aos casos analisados: há existência do nexo de causalidade? 

Em suma, a defesa do Estado asseverava que não havia nexo de causalidade que houve algum agir do Estado para que houvesse a responsabilização.

À luz deste contexto, pode-se dizer que no campo da responsabilidade civil, a regra é a responsabilidade objetiva do Estado, sob forma da teoria do risco administrativo, que encontra amparo no art. 37, § 6º, da Constituição Federal:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Resta evidenciado, como a Constituição adotou a teoria do risco administrativo – e não a teoria do risco integral – o Estado somente será responsabilizado se o dano decorrer de ação ou omissão do Poder Público.

É necessário que haja, portanto, relação de causalidade entre a ação ou omissão do Poder Público e o dano. Sem essa relação de causalidade não é possível imputar responsabilidade ao Estado.

No caso concreto, como a perícia foi inconclusiva em relação à origem do disparo do projétil que atingiu a vítima, o juiz e o TRF2 consideraram ausente o nexo de causalidade, elemento essencial para caracterizar a responsabilidade do Estado e, consequentemente, o seu dever de indenizar.

O STF, contudo, discordou dessa conclusão do TRF2 e condenou a União a indenizar.

Para o STF, existe nexo de causalidade considerando que, se não tivesse havido a operação no local, não haveria troca de tiros e, consequentemente, não haveria a bala perdida.

Nas palavras do Min. Relator Edson Fachin:

“(…) a operação dos militares do Exército desencadeou a troca de tiros. Se a incursão da Força de Pacificação do Exército não tivesse ocorrido, não haveria troca de tiros e, por conseguinte, João (nome fictício) não teria sido assassinado. Assim sendo, independe saber se o projétil proveio da arma dos militares do Exército ou dos confrontados, haja vista que os integrantes da Força de Pacificação do Exército assumiram o risco (dano colateral) ao proceder uma operação em local habitado.

Nesse sentido, o fato gerador do dano não é o projétil em si, mas sim a operação da Força de Pacificação do Exército. Daí porque, para configurar o nexo de causalidade, não é necessário saber se o projétil proveio da arma dos militares do Exército ou dos confrontados, mas sim se houve operação da Força de Pacificação do Exército no momento e no local em que a vítima foi atingida por disparo de arma de fogo.”

Nessas circunstâncias, o Estado, quando vai realizar operações policiais ou de pacificação do Exército em locais habitados, possui o dever específico de adotar as cautelas necessárias para preservar a vida e a integridade física dos moradores da região impactada. Se ele descumpre esse cuidado e ocorrem danos colaterais, possui o dever de indenizar as vítimas.

Assim, os militares da Força de Pacificação, ao realizar operação em zona habitada e, a partir dela, desencadear intensa troca de tiros com os confrontados, descumpriu com o seu dever de diligência, a ensejar a responsabilidade objetiva do Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88.

O Poder Público (no caso, a União) poderia se isentar do dever de indenizar provando uma causa excludente de responsabilidade?

SIM! Se a vítima morre durante uma operação das forças estatais na favela, existe uma presunção de nexo de causalidade em desfavor do poder público.

Vale ressaltar, contudo, que o Estado pode comprovar força maior, caso fortuito, fato exclusivo da vítima ou de terceiro para se eximir da responsabilidade civil.

Nesse sentido:

(…) no contexto de incursões policiais, comprovado o confronto armado entre agentes estatais e criminosos (ação), bem como a lesão ou morte de cidadão (dano) por disparo de arma de fogo (nexo), cabe ao Estado comprovar a ocorrência de hipóteses interruptivas da relação de causalidade.

4. O Estado, que possui os meios para tanto – como câmeras corporais e peritos oficiais –, deve averiguar as externalidades negativas de sua ação armada, coligindo evidências e elaborando os laudos que permitam a identificação das reais circunstâncias da morte de civis desarmados dentro de sua própria residência.

5. Portanto, se o cidadão demonstra a causa da morte – disparo de arma de fogo – e evidencia a incursão estatal armada no momento do dano, estão configurados elementos da responsabilidade objetiva do Estado, de modo que cabe a este comprovar a interrupção do nexo causal, evidenciando

(i) que os agentes estatais não provocaram as lesões, seja porque, por exemplo, não dispararam arma de fogo ou engajaram em confronto em local diverso do dano; ou

(ii) a culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiro.

A mera negativa de ação estatal ilícita, sem a demonstração da interrupção do nexo causal e da conformidade da incursão armada de agentes de segurança pública, com o esclarecimento da dinâmica factual, não é suficiente para afastar a responsabilidade civil do Estado. (…)

STF. 2ª Turma. ARE 1.382.159, Rel. Min. Nunes Marques, Redator para acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 28/03/2023.

Impende destacar que no caso em tela, não é factível a exclusão da responsabilidade estatal por força maior ou caso fortuito. 

Por conseguinte, além de previsíveis os riscos da operação militar em local habitado, era possível, pelo planejamento da ação da Força de Pacificação do Exército, evitar o desencadeamento do intenso tiroteio no Complexo da Maré.

Para além disso, a União não comprovou a ocorrência de fato exclusivo de terceiro, isto é, que pessoa sem ligação com a operação militar tenha causado o dano à vítima.

Ademais, não é possível excluir a responsabilidade estatal por fato exclusivo da vítima, dado que essa foi atingida por projétil enquanto estava em casa.

Teses fixadas pelo STF:

(i) O Estado é responsável, na esfera cível, por morte ou ferimento decorrente de operações de segurança pública, nos termos da Teoria do Risco Administrativo;

(ii) É ônus probatório do ente federativo demonstrar eventuais excludentes de responsabilidade civil;

(iii) A perícia inconclusiva sobre a origem de disparo fatal durante operações policiais e militares não é suficiente, por si só, para afastar a responsabilidade civil do Estado, por constituir elemento indiciário.

STF. Plenário. ARE 1.385.315/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 11/04/2024 (Repercussão Geral – Tema 1237) (Info 1132).

E o caso de Gisele, a médica da marinha baleada?

No caso de Gisele, temos duas soluções:

  1. Caso a perícia de “bala perdida” seja inconclusiva quanto a origem do disparo e o Estado não demonstre que a bala não partiu de seus agentes, haverá responsabilidade civil do Estado.
  2. Caso a perícia de “bala perdida” seja inconclusiva quanto a origem do disparo, mas o Estado demonstre “fato exclusivo de terceiro”, isto é, que a bala não partiu de seus agentes, não haverá responsabilidade civil do Estado.

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Estratégia – Edição: Montedo.com

3 respostas

  1. Eu nem irei adentrar a análise de quem a realizou. No entanto existem alguns elementos não levados em conta na análise, talvez por desconhecimento da pessoa. A escola onde a militar se encontrava possui um muro baixo e fica realmente ao lado de uma das comunidades e ali há constantes tiroteios, fato notório – pergunte a morador ou militar -. Dentro do hospital existe no último andar um auditório o qual é constantemente utilizado para cerimônias e palestras e lá nunca se teve notícias de disparos o atingirem. Então, se existem a possibilidade de realizar uma cerimônia em local mais protegido e que é destinado justamente para o mesmo fim, por que não se colocou como local para toda a formatura, a fim de semana evitar a possibilidade de um tiroteio que é previsível? Sim, há previsibilidade de que o evento tiroteio ocorrerá e mesmo assim expor a perigo algum servidor. Apesar da conduta ser de terceiro não se retira totalmente o nexo causal da conduta e o resultado, pois uma simples conduta de proteger em outro local já levaria a reduzir o risco. Não me estendendo a militar deve receber, no mínimo uma promoção post mortem e a discussão se sim ou não de receber alguma indenização moral será feita na justiça.

  2. culpa tanto do estado quanto da marinha em não blindar as janelas, pode até ser que não parem de ocorrer as tragédias, mas pode salvar muitas vidas, até porque aquela favela não vai sair de lá.

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