The Economist: Como a guerra na Ucrânia reavivou as discussões sobre serviço militar obrigatório

Cartaz anuncia conscrição na Rússia; ministro da Defesa Sergei Shoigu afirma que mais de 50 mil pessoas entraram no serviço militar desde o começo de 2024.  Foto: Yuri Kochetkov/EFE

 

Com guerra na Ucrânia e ameaças de Donald Trump sobre Otan, Europa discute serviço militar obrigatório em esforço para aumentar contingentesThe Economist
O serviço militar obrigatório está em debate novamente na Europa. As razões? A possibilidade de uma derrota da Ucrânia espreita, assim como a ameaça de Donald Trump voltar a ocupar a Casa Branca e retirar os Estados Unidos da Otan. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, afirma que a Europa tem de estar pronta para a guerra antes do fim desta década. Ele diz que a suspensão, em 2011, do serviço militar de um ano para jovens recém-saídos da escola foi “um erro”. O general Patrick Sanders, comandante do Exército britânico, conclamou um “Exército cidadão”.

Temporadas de serviço obrigatório em Forças Armadas podem assumir várias formas, incluindo conscrição de civis de qualquer idade, convocações por sorteio e um período obrigatório padronizado para jovens recém-saídos da escola. A obrigatoriedade tem sido considerada porque muitos países ricos têm dificuldades para recrutar gente suficiente para suas forças profissionais, de alistamento voluntário. Alguns países olham com admiração para membros da Otan nórdicos e bálticos, que possuem serviços militares obrigatórios e contam com grandes índices de aprovação do público. A Suécia encerrou a obrigatoriedade em 2011, mas reinstituiu em 2018.

Outros países deveriam adotar essa estratégia? A resposta curta é: ainda não. Exércitos devem ser projetados para refletir sobre geografias e maneiras que pretendem lutar. Em países com populações relativamente pequenas e fronteiras próximas à Rússia, como Estônia e Finlândia, a aceitação pública à conscrição é alta, e o treinamento prepara as forças para uma defesa em estilo “porco-espinho” contra um invasor. Existe uma forte sensação comum de dever nacional. Por razões similares, o serviço militar em Israel, que encara ameaças de segurança constantes, é incontroverso (à parte o ressentimento sobre os ultraortodoxos não terem de servir). Taiwan e Coreia do Sul têm conscrição porque também ficam próximas de potências beligerantes.

Cidadãos na maioria dos demais países ricos não sentem ainda nenhuma ameaça iminente. Então, para a conscrição ser factível, teria de haver um entendimento claro e comum sobre os motivos de sua necessidade. Isso não está presente em países como Reino Unido e França, onde não é óbvio o que conscritos poderiam fazer em um Exército moderno e tecnologicamente sofisticado. Além disso, “em uma crise”, cada país tem que acionar uma divisão completa (30 mil soldados com equipamento pesado) em 30 dias caso a Otan necessite. Lidar com grandes contingentes de conscritos seria uma distração.

Já que o serviço militar obrigatório infringe duramente a liberdade dos jovens, essa política precisaria de apoio público. Mesmo a Ucrânia, com a existência em risco, percebeu que diminuir a idade de convocação de 27 anos para 25 é politicamente delicado. Sem dúvida, as dificuldades enfrentadas pela maioria das Forças Armadas europeias em recrutar novos soldados permanentes e formar reservistas capacitados precisam de retificação. Mas a maioria pode ser resolvida por meios não obrigatórios.

Primeiramente, considerem aumentar os soldos dos soldados. Gente mais velha às vezes resmunga sobre supostas falhas de caráter que fazem os jovens rejeitar o serviço. Mas os salários baixos e as condições precárias são de longe os maiores obstáculos quando as pessoas em busca de trabalho têm outras opções. Os orçamentos de defesa estão crescendo, mas precisam aumentar mais rapidamente. A meta de gasto de membros da Otan, o equivalente a 2% de seus PIBs, em defesa não será suficiente para cobrir salários mais altos e novos equipamentos. Também deveria haver mais experimentação, por exemplo, com treinamentos militares de um ano que possam ser combinados com estudos universitários e outras capacitações. E apesar de muito debate, poucos Exércitos fizeram o suficiente para recrutar mulheres e combater o assédio sexual.

Em segundo lugar, mais apoio da sociedade civil é necessário para atrair profissionais com habilidades especializadas necessárias em emergências. Além de atrair mais voluntários para aumentar as forças regulares, os Exércitos deveriam aumentar também o contingente de reservistas, fazendo os soldados que deixam das forças concordarem em passar por períodos anuais de treinamento até idades em torno dos 45 anos. Desse modo, o Reino Unido teria capacidade de mobilizar até 300 mil soldados se necessário. Os números podem ser ainda mais elevados na França e na Alemanha, que possuem Exércitos maiores.

Nesta época de tensões, os países deveriam ainda ter planos a respeito das maneiras, caso o pior piorar ainda mais, segundo as quais uma mobilização maior poderia ocorrer. Para dissuadir os inimigos mais poderosos, nós devemos estar prontos para uma guerra que não queremos travar. Perguntem aos corajosos ucranianos.

As the U.S. winds down the Afghan war, the government is eyeing a much reduced military force — to its lowest level since World War II. Here, soldiers from the U.S. Army’s 3rd Brigade Combat Team, 1st Infantry Division, salute during the playing of “The Star-Spangled Banner” during a homecoming ceremony Feb. 27 in Fort Knox, K

Você realmente morreria pelo seu país?
Deitada de bruços em uma floresta holandesa, Sabrina van den Goorbergh dispara projéteis de festim com um fuzil de assalto Colt C7. A aluna do terceiro ano de medicina participa do Dienjaar (ano de serviço), um novo programa que permite a jovens holandeses se alistar para um treinamento de um ano nas Forças Armadas, no lugar do período de alistamento comum, de quatro anos. O programa é um sucesso, com uma procura de três candidatos por vaga, e o governo pretende aumentar o número de vagas de 625 para mil no próximo ano.

Mas os Países Baixos mal começaram a resolver seus problemas de recrutamento. As Forças Armadas holandesas têm 49 mil soldados, menos de um quinto de seu tamanho durante a Guerra Fria, e uma em cada dez posições não está ocupada. No ano passado, o alistamento regular atraiu somente 3,6 mil novos conscritos, aquém de sua meta de 5 mil. Este é um momento em que, diante da maior guerra no continente desde 1945, muitos países europeus querem de fato expandir suas Forças Armadas, não apenas mantê-las. Até 2030, a Alemanha pretende aumentar seu contingente de 182 mil para 203 mil soldados, e a França, de 240 mil para 275 mil (veja o gráfico 1). A Polônia planeja aumentar seu contingente de 197 mil para 220 mil soldados até o fim deste ano — e eventualmente a 300 mil.

O problema é que os jovens de hoje, individualistas e com foco em carreiras profissionais, relutam em se alistar. E não é apenas a Europa que enfrenta dificuldades no recrutamento. Dentro e no entorno das regiões em conflito no planeta a dúvida sobre como fazer mais gente vestir o uniforme é vital. Alguns países estão considerando uma solução antiga: serviço militar obrigatório para jovens (ou homens jovens), com frequência recém-saídos da escola. A terminologia varia. Conscrição geralmente significa obrigar civis a se alistar nas Forças Armadas, enquanto serviço militar com frequência se refere a um subconjunto desse montante: ordenar jovens a cumprir um período servindo às forças.

No início do século 20, cerca de 80% dos países tinham alguma forma de conscrição; em meados da década de 2010, esse índice se situava pouco abaixo de 40%. A prática alcançou seu auge durante as guerra mundiais, e muitos países continuaram a aplicá-la durante a Guerra Fria. Posteriormente, o foco do Ocidente se voltou para campanhas de contrainsurgência altamente tecnológicas, como no Afeganistão e no Iraque, Exércitos massivos de conscritos foram substituídos principalmente por forças menores e profissionais, de alistamento voluntário. Desde 1995, 13 membros da OCDE puseram fim à conscrição. Vinte e quatro dos 32 membros da Otan acabaram com o processo. Mas países autoritários, como Irã, Coreia do Norte e Rússia, dobraram a aposta em seus Exércitos recrutados compulsoriamente.

O debate mais urgente em torno do serviço militar obrigatório e a conscrição ocorre em países diante de ameaças sérias de guerra ou já envolvidos em conflitos. Consideremos a Ucrânia. Mais de dois anos após o início da invasão russa, milhares de homens fogem pelas fronteiras do país ou se escondem para evitar ser convocados oficialmente pelas autoridades. Em 2 de abril, a falta de soldados forçou o governo a baixar a idade mínima de conscrição de 27 para 25 anos. A Rússia jogou centenas de milhares de homens mobilizados à força no moedor de carne desta guerra.

Em Israel, deveres militares são um pilar central da cidadania. Depois dos ataques de 7 de outubro, cerca de 300 mil israelenses abandonaram suas vidas civis e se apresentaram às suas unidades. Israel pretende estender o serviço dos conscritos do sexo masculino para três anos (as mulheres servem atualmente 24 meses, e os homens, 32) e elevar a idade máxima para convocação de reservistas para 45 anos. Ao mesmo tempo, a dispensa do serviço militar para judeus ultraortodoxos alimenta uma amarga briga política.

Enquanto isso, na Ásia, Taiwan tenta se preparar para uma possível guerra com a China, conforme as tensões sino-americanas persistem. Taiwan estendeu em 2022 o período de serviço militar de quatro meses para um ano. Mas a ilha ainda mantém apenas 169 mil soldados na ativa (a China possui cerca de 2 milhões). A Coreia do Sul, onde o serviço militar tem reputação de brutalidade, está tentando tornar as coisas mais atraentes. O serviço militar foi reduzido para 18 meses, os soldos estão crescendo e sargentos sádicos têm sido extirpados. O governo também quer contratar mais mulheres (a conscrição exclusivamente masculina alimentou ressentimentos entre os homens e políticas antifeministas).

Em muitos lugares, recrutadores de Forças Armadas enfrentam dificuldades em face a valores em transformação: os jovens ficaram avessos a lutar até mesmo em guerras defensivas. Por décadas, a World Values Survey (WVS), um projeto de pesquisa acadêmica, tem feito a mesma pergunta a pessoas de todo o mundo: “Você estaria disposto a lutar pelo seu país?”. Na rodada mais recente da pesquisa, realizada entre 2017 e 2022, apenas 36% dos holandeses com idades de 16 a 29 anos disseram sim.

Recrutadores tentam reagir com retóricas de patriotismo, realização pessoal e valores comuns; o enfático slogan das Forças Armadas alemãs, as Bundeswehr, é Wir. Dienen. Deutschland. (Nós. Servimos. À Alemanha.) Elas também fazem campanhas com influenciadores no TikTok e no Instagram, mas que não parecem suficiente para chegar em seu público-alvo.

Isto é em parte de se esperar. Conforme os países enriquecem, seus cidadãos tendem a ficar menos ávidos a se sacrificar pela nação. O cientista político alemão Herfried Münkler, classificou as democracias ocidentais como sociedades “pós-heróicas”, nas quais “o valor mais elevado é a preservação da vida humana” e do bem-estar pessoal. A história certamente desempenha um papel, a disposição de lutar é baixa nos países que perderam a 2.ª Guerra (Alemanha, Itália e Japão). Na Espanha e em Portugal, décadas de ditaduras militares tornaram os cidadãos suspeitos em relação às Forças Armadas.

Mas as coisas podem mudar quando conflitos se aproximam. De acordo com um artigo ainda não publicado de Wolfgang Wagner e Alexander Sorg, da Universidade Livre de Amsterdã, e Michal Onderco, da Universidade Erasmus, de Roterdã, a proximidade com a guerra deixa os cidadãos mais dispostos a lutar. Na Europa, isso ajuda a explicar por que países próximos à Rússia são menos pacifistas.

Alinhamentos políticos são indicadores ruins da disposição a pegar em armas. “A direita radical não tem tanta vontade de lutar”, afirma Wagner, pelo menos na Alemanha e nos Países Baixos. No ano passado, ele e seus colegas encomendaram um estudo nesses países que constatou que poucas pessoas que planejavam votar em partidos de extrema esquerda ou de extrema direita estavam dispostas a lutar pelos seus países. Quem apoiava legendas centristas, como o Partido Social-Democrata da Alemanha e a União Democrata-Cristã, se mostrava mais disposto.

Além dos valores em transformação, os recrutadores militares enfrentam uma dificuldade econômica: os jovens têm atualmente vários empregadores disputando pelos seus serviços. Nos países mais ricos, a Geração Z escolhe o emprego que mais lhe apetece.

O desemprego na faixa de cidadãos com idades entre 15 e 24 anos na União Europeia foi de 14,5% no ano passado, contra 22,4% em 2015. Na Alemanha, o índice foi de apenas 5,8%. Em mercados de trabalho tão aquecidos, Exércitos têm tido dificuldade para competir com o setor privado. Além disso, sentar-se a uma mesa é bem melhor que arrastar-se na lama.

Em alguns países ricos, porém, a disposição de lutar dos jovens permanece alta. Na França, essa fatia é de 58%, segundo a WVS. O índice é ainda mais alto em Cingapura, Taiwan e Coreia do Sul. Na Dinamarca, na Finlândia, na Noruega e na Suécia, quatro dos países mais ricos e pacíficos do planeta, dois terços ou mais dos cidadãos afirmam estar dispostos a lutar. (Todos próximos à Rússia.) Suas Forças Armadas em expansão também não têm problemas em encontrar soldados: todos os países têm serviço militar obrigatório para os jovens.

A Suécia de fato eliminou a prática em 2011, mas retomou em 2018, após não atender metas de recrutamento. Trata-se de um estudo de caso intrigante para os demais. Logo após aderir à Otan, a Suécia está aumentando seu contingente militar de 69,7 mil para 96,3 mil soldados, o que requer cerca e 10 mil recrutas por ano. Todos os cidadãos de 19 anos na Suécia (homens e mulheres) devem preencher questionários para o serviço militar; um pouco menos de um terço se qualifica, e um décimo é por fim integrado.

Em vez de amargar os jovens em relação às Forças Armadas, o serviço militar obrigatório na Suécia parece lhes provocar mais entusiasmo. Em pesquisas de opinião que respondem no fim dos períodos servindo, “cerca de 80% dos conscritos recomendam o serviço militar para os jovens”, afirma o ministro sueco da Defesa, Pal Jonson. Cerca de 30% se realistam como soldados ou reservistas. Já que mais jovens que o necessário se qualificam, apenas os melhores candidatos conseguem uma posição, e o serviço militar figura como um ponto positivo nos currículos dos suecos.

Esse tipo de construção ajuda a manter os Exércitos nórdicos como um caldeirão que mescla diferentes classes sociais — e desencoraja a polarização política. (Voluntários em Forças Armadas tendem a pender para a direita; na Alemanha, células neonazistas foram descobertas nas Bundeswehr.) No Oriente Médio muitos Estados também consideram o serviço militar para os jovens uma ferramenta de coesão social. Os Emirados Árabes Unidos introduziram em 2014, em parte para forjar uma sensação de identidade comum entre os jovens. Marrocos, Jordânia e Kuwait seguiram o exemplo.

Vocês não têm tempo a perder
A escassez de contingente militar em muitos Estados democráticos sugere que estratégias melhoradas de recrutamento não são suficientes para aumentar o número de soldados. Poucos estudantes de medicina têm a motivação de Van den Goorbergh de iniciar o treinamento militar e acumular essa atribuição às suas vidas. Nas sociedades liberais, grandes segmentos das populações passaram a considerar servir às Forças Armadas dever de outras pessoas. Reintroduzir o serviço militar para os jovens pode ser impraticável pela mesma razão que o recrutamento decresce: os cidadãos sentem-se distanciados das Forças Armadas.

Mas o modelo nórdico ajuda a construir a ponte sobre esse despenhadeiro, garantindo que o serviço militar siga um elemento natural da vida social e incentivando os recém-saídos da escola a considerar uma carreira relacionada. Outros jovens ainda poderão se alistar apenas em uma crise. “O que move a gente à ação é o medo”, afirma Andrei, um ex-produtor de TV que combate atualmente no leste da Ucrânia. Ele se alistou no dia seguinte ao início da invasão russa. A maioria dos ucranianos também não achava que teria de lutar por seu país algum dia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

ESTADÃO – Edição: Montedo.com

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