Investigada por fornecer comida estragada no Ceará, empresa venceu três lotes de uma licitação milionária do Ministério da Defesa para alimentação de venezuelanos refugiados no Brasil. Contratos somam R$ 49 milhões.
Eduardo Militão Do UOL, em Brasília
O que aconteceu
A fornecedora de alimentos ISM Gomes de Mattos chegou a abocanhar todos os seis lotes da licitação, de cerca de R$ 100 milhões, para produção de marmitas a imigrantes atendidos pela Operação Acolhida, em Roraima. O cenário foi, contudo, revertido após recurso das concorrentes.
Empresas concorrentes apontam favorecimento da ISM no pregão do Ministério da Defesa que prevê a distribuição de três refeições diárias a 10,5 mil venezuelanos em Boa Vista e Pacaraima por um ano. A ISM e o Ministério da Defesa negam a existência de cartas marcadas na licitação.Um dos lotes –que fornecerá café da manhã a imigrantes em Pacaraima– estava em vias de ser entregue à ISM, da empresária Idalina Sampaio, quando a Justiça Federal impediu.
A RK Refeições —que apresentou o menor preço (R$ 5,20 por marmita)— havia sido desclassificada, mas conseguiu reverter a medida após recorrer à Justiça.
Como nós já tivemos problemas com a [Operação] Acolhida e com a ISM Gomes, que é a empresa que geralmente ganha, nós entramos com recurso administrativo e mandado de segurança.
Humberto Pedrosa, advogado da RK
Não é a primeira vez que isso acontece, segundo o advogado relatou ao UOL.
“Já fomos inabilitados lá atrás pela mesma fundamentação, na qual a ISM Gomes foi favorecida.”
Em outros dois lotes, a ISM chegou a ser alçada à primeira colocação também em razão da desclassificação da vencedora, o que posteriormente foi revertido pelo Ministério da Defesa.
Atualmente, a ISM acumula três lotes da licitação com contratos de R$ 49 milhões ainda não assinados. Isso porque o governo suspendeu a confirmação do resultado dos seis lotes em razão da decisão judicial. Já a fase de recursos foi mantida em toda a licitação.
A ISM negou, por meio de nota e advogados, irregularidades ou favorecimento no pregão. O Ministério da Defesa também refutou a existência de cartas marcadas. A pasta atribuiu o fato de a ISM levar todos os lotes à desclassificação de concorrentes, que depois foram reabilitadas.
“De forma alguma há de se mencionar quanto a favorecimentos, tendo em vista que todas as ações foram objetivamente demonstradas e vinculadas aos preceitos legais previstos na lei de licitações e contratos administrativos.”
Ministério da Defesa, em nota
Investigação por comida estragada
A ISM é suspeita de fornecer alimentos estragados e em quantidade insuficiente a hospitais, escolas e presídios do Ceará durante o governo de Camilo Santana (PT), hoje ministro da Educação.
O Ministério Público do Ceará também vê suspeita de fraude em licitação, desvio e lavagem de dinheiro.
Em 2018, Idalina Sampaio doou R$ 70 mil à campanha vitoriosa de Camilo Santana à reeleição.
O Ministério da Defesa indicou que a investigação da Promotoria contra a ISM não poderia impedi-la de concorrer. “Todos os documentos de habilitação, previstos na lei, foram analisados e não foram encontradas irregularidades.”
Já a ISM manifestou “plena disposição em colaborar com o órgão, assim como, se colocou à integral disposição para fornecer informações e documentos necessários à elucidação dos fatos”.
A empresa afirmou ainda que seus produtos têm qualidade. “Reforçamos nosso compromisso com as normativas sanitárias e ambientais para o exercício de nossas atividades”, disseram os advogados.
A ISM também respondeu a dois processos no TCU (Tribunal de Contas da União). Apesar de irregularidades terem sido identificadas, não houve punições e as ações foram encerradas.
As investigações miravam contratos da ISM para fornecer alimentos à Operação Acolhida e a hospitais federais, por meio do Ministério da Saúde, durante o governo Bolsonaro. Nas duas ocasiões, Eduardo Pazuello —hoje deputado federal pelo PL-RJ— estava à frente dos órgãos contratantes.
Apenas entre 2018 e 2020, a empresa recebeu R$ 141 milhões por oito contratos da Operação Acolhida, segundo o TCU.
Criada em 2018, a Operação Acolhida abriga venezuelanos que fogem do regime do ditador Nicolás Maduro. Postos de atendimento e abrigos em Pacaraima e Boa Vista são a primeira porta de acolhimento.
Governo recua após Justiça suspender licitação
Foram duas as justificativas para a desclassificação da RK Refeições por organizadores do pregão do Ministério da Defesa: uma sanção anterior e preços baixos demais.
No entanto, a juíza da 1ª Vara Federal Cível de Manaus, Jaiza Pinto Fraxe, impediu que a ISM fosse declarada vencedora. Ela desconsiderou a sanção —por ela já ter sido cancelada— e pediu esclarecimentos ao governo, já que a licitação ficaria mais cara. Na prática, a licitação foi suspensa.
Duas horas após a decisão, no dia 1º deste mês, a Defesa reclassificou a RK ao analisar um recurso da empresa.
O que dizem os citados na reportagem
Os advogados da ISM afirmaram ao UOL que o processo de licitação “foi conduzido dentro da mais estrita legalidade” com a participação de 41 empresas. Três saíram vencedoras: a própria ISM conseguiu metade dos seis lotes. Os outros ficaram com a RK Refeições e com a Cozinha Gourmet Ltda..
Foi um pregão eletrônico. Essa licitação permitiu empresas internacionais. Três empresas sagraram-se vencedoras. A ISM não tem qualquer influência sobre esse processo ou qualquer órgão da administração.Caio Fonteles, advogado da ISM
O ministro Camilo Santana e o deputado Eduardo Pazuello afirmaram não ter relação com a ISM.
“O ministro Camilo Santana não tem nenhuma proximidade pessoal ou profissional com referida empresa, muito menos manteve qualquer tratativa sobre qualquer tipo de negócio”, afirmou a assessoria do Ministério da Educação.
A assessoria de Pazuello disse que ele nunca teve contato com representantes da ISM e que as licitações da Acolhida e dos hospitais federais não tiveram participação dele.
“A escolha foi conduzida pela 1ª Brigada de Infantaria de Selva, uma vez que a operação não tinha autonomia administrativa”, afirmou a assessoria do deputado.