Empresas devem pagar tarifas pelo uso de instalações e serviços que dão segurança à navegação aérea, oferecidos pelo sistema de controle do espaço aéreo
JOANA CUNHA E PAULO RICARDO MARTINS
Quando a Gol tornou pública a sua lista de credores logo depois de anunciar o pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos, um nome chamou a atenção: o Comando da Aeronáutica apareceu como o segundo maior credor da companhia aérea, com mais de R$ 1 bilhão a receber.
A cifra surpreendeu o mercado de transporte aéreo brasileiro especialmente em um momento em que as companhias negociam mais recursos do governo federal para ajudá-las a atravessar a crise que atingiu o setor desde a pandemia. De acordo com as demonstrações contábeis das companhias aéreas registradas na Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), a Gol não é a única companhia que acumulou um passivo tão volumoso.
A Azul também apresenta cerca de R$ 1 bilhão em tarifas de navegação aérea a pagar, conforme os dados do terceiro trimestre de 2023. Ainda segundo os números registrados na agência reguladora, a Latam é a única das três grandes companhias brasileiras que não tem tarifas do tipo a pagar.
Ao Comando da Aeronáutica, as empresas devem pagar tarifas pelo uso de instalações e serviços que dão segurança à navegação aérea, oferecidos pelo sistema de controle do espaço aéreo.
O Decea (Departamento de Controle do Espaço Aéreo), órgão subordinado ao Comando da Aeronáutica, é quem faz a gestão do sistema de controle, promove os serviços de navegação que viabilizam os voos e o fluxo do tráfego aéreo no país e, portanto, fica responsável pela cobrança das tarifas.
Procurada pela reportagem, a Azul respondeu que fez um acordo e aderiu ao programa de parcelamento do Decea para pagar os débitos do período da pandemia. A empresa diz também que “tem cumprido rigorosamente com suas obrigações financeiras” e que “todos os pagamentos estão em dia”. Já a Gol afirma que “segue cumprindo todos os seus acordos com o Decea”.
Representantes do setor costumam se queixar de que o governo brasileiro não deu suporte às empresas aéreas na pandemia, diferentemente do que fizeram os governos dos EUA e de países europeus. Porém, as três companhias juntas receberam ao menos R$ 7,59 bilhões em benefícios fiscais em 2021, sendo R$ 3,8 bilhões para a Latam, R$ 1,8 bilhão para a Gol e R$ 950 milhões para a Azul.
Somados, os passivos pendentes das duas companhias em tarifas de navegação adicionam outros R$ 2 bilhões. O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, sinalizou, em janeiro, que o governo discutia a possibilidade de ser criado um fundo de até R$ 6 bilhões para socorrer as aéreas.
A discussão sobre um pacote de socorro às aéreas tem gerado questionamentos sobre a real necessidade de ajuda. No mesmo dia em que tornou público o seu pedido de recuperação judicial, a Gol informou o mercado que teria um financiamento de US$ 950 milhões na modalidade DIP (debtors in possession), intermediado por credores da Abra, holding que controla a Gol e a colombiana Avianca. No caso da Azul, a empresa manifesta interesse em adquirir ativos da Gol, conforme a Folha de S.Paulo antecipou em janeiro.
A outra questão que gera resistência é de onde sairia o dinheiro. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já alertou que é contra a liberação de recursos do Tesouro. O parcelamento de débitos de tarifas de navegação aérea faz parte de uma série de medidas adotadas em 2020 para mitigar os efeitos da crise sanitária sobre o setor.
Em março daquele ano, o governo Jair Bolsonaro (PL), por meio do Ministério da Infraestrutura, anunciou a postergação do pagamento de tais tarifas. Em agosto, após pedido de entidades representantes das companhias, o Comando da Aeronáutica publicou uma nova portaria estabelecendo mais um adiamento do prazo de vencimento das taxas.
De acordo com relatório do TCU, houve, segundo o Comando da Aeronáutica, um repasse de R$ 450 milhões pelo Ministério da Economia, como forma de compensar a perda de arrecadação das tarifas de navegação pelas companhias aéreas de março a junho de 2020. O Decea afirmou que, para viabilizar a nova postergação, seria necessário um aporte adicional em torno de R$ 600 milhões pelo Ministério da Economia por causa da frustração de receita. Segundo o TCU, não há novos relatórios sobre o assunto.
O tema é tratado como caixa-preta pelos órgãos envolvidos.
A Folha de S.Paulo procurou a assessoria de imprensa do Decea para perguntar qual é o valor atualizado das dívidas das companhias aéreas, mas o departamento afirmou que o dado é protegido pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e se recusou a informar até o montante somado, mesmo sem identificar a quantia de cada empresa.
A reportagem reiterou a pergunta por meio da Lei de Acesso à Informação, mas o Decea argumentou que respeita a privacidade no tratamento das informações e não forneceu os dados.
FOLHAPRESS