Decisão do STF vai se basear no resultado da perícia dos militares. Estado do Piauí judicializou a questão e justifica tentativa de recuperar territórios. Ceará pretende ouvir a população a respeito.
Maria Romero, g1 PI
Representantes do Piauí e do Ceará irão se reunir nesta sexta-feira (7) no Quartel General do Exército, com o comando do Serviço Geográfico do Exército, em Brasília. O objetivo é que os estados conheçam as técnicas e metodologias utilizadas pelos militares na perícia acerca do litígio entre os estados.
Eric Melo, mestre em geografia, pesquisador do tema e assessor técnico do governo do Piauí, explicou ao g1 que o estado busca recuperar uma área de mais de 3 mil km² ocupada atualmente por 13 municípios cearenses. A decisão deve ampliar o território de oito municípios piauienses.
“Irei participar da reunião com os peritos do Exército e conhecer os detalhes da metodologia que definirá a divisa entre Piauí e Ceará. Espero que o Serviço Geográfico do Exército (SGE) mantenha a mesma metodologia utilizada em outros litígios territoriais e que, assim, tenhamos uma justa definição do que pertence ao Piauí”, disse.
Para buscar um fim à disputa secular, o Piauí judicializou a questão ainda em 2011. O Supremo Tribunal Federal determinou então que o Exército realizasse a perícia na região do litígio, na Serra da Ibiapaba.
A perícia ainda não foi concluída e a previsão é de que se encerre em 2024. Eric destacou a importância do encontro, já que com base na perícia o STF irá decidir sobre o caso.
Entenda o litígio entre os estados
O litígio iniciado em 1758 entre o Piauí e o Ceará permanece até hoje. Os dois estados disputam uma área de terras que fica na Serra da Ibiapaba e envolve 13 municípios cearenses e oito piauienses. Ao todo, são 3 mil quilômetros quadrados de terras e cerca de 25 mil pessoas envolvidas.
O caso está tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, que solicitou ao Exército uma perícia na região para decidir a quem pertencem as terras. A ação foi impetrada pelo governo do Piauí ainda em 2011 e já custou R$ 6,910 milhões aos cofres piauienses. Os governos do Piauí e Ceará se manifestaram sobre esta disputa (veja mais abaixo).
A questão divide os moradores da região, com população estimada em 25 mil pessoas, que tem grande potencial econômico, especialmente na área do agronegócio. Parte da população de algumas das cidades é contrária a essa mudança de naturalidade, outra, é a favor.
O assunto foi tema da dissertação de mestrado, pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), do geógrafo Eric de Melo que, após extensa pesquisa, é taxativo: o Piauí sempre teve direito ao território e o Ceará permanece avançando sobre terras piauienses.
Ele diz que muitos mitos precisam ser desfeitos: o primeiro de que o Piauí nunca teve litoral e que o Ceará teria cedido o território ao estado. O segundo de que o trecho da Serra da Ibiapaba teria sido cedido ao Ceará nesta troca.
O tema, porém, é cheio de controvérsia. A deputada estadual cearense Augusta Brito, presidente do Comitê de Estudos de Limites e Divisas Territoriais do Ceará (Celditec), afirma que o estado possui, sim, argumentos legais e culturais para embasar a defesa que o território deve continuar pertencente ao Ceará. O colegiado é o órgão da Assembleia Legislativa responsável por acompanhar e discutir questões relacionadas a disputas territoriais no estado.
Municípios envolvidos
Os municípios cearenses envolvidos na disputa, que podem perder parte do seu território, são: Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús.
No Piauí, alguns municípios podem ter seus territórios aumentados, sendo eles: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, São João da Fronteira, Pedro II, Buriti dos Montes, Piracuruca, São Miguel do Tapuio.
‘O Piauí sempre teve litoral’
Mapas mostram que o Piauí já tinha território definido desde 1760, com o Mapa de Galucio — Foto: Mapa da Capitania do Piauí (1760), produzido pelo engenheiro militar Henriques Antonio Galúcio (NOGUEIRA, 2002)/Eric Melo
“Antigamente, se dizia que o litígio havia surgido de uma ‘troca’ entre Piauí e Ceará, que dera o litoral do Piauí. Na verdade, o Ceará invadiu o litoral do Piauí e, em 1880, Dom Pedro II assina um decreto obrigando a devolução desse litoral”, explica o pesquisador Eric de Melo.
Ele completa: “Paralelo a isso, em decorrência das secas de 1840 e 1877, o Ceará recebia atenção especial do Império, que, aproveitando o decreto, decide passar para o Ceará terras do leste do Piauí, que compreendem as nascentes do rio Poti. Não foi uma troca”.
Mapa do Ceará foi definido anos depois do mapa do Piauí e não incluía litoral piauiense — Foto: Eric de Melo/Mapa Geographicó da Capitania do Seará de 1800 de Mariano Gregório do Amaral
Disputa judicial
O procurador do Estado Luiz Filipe Ribeiro, que integra a Procuradoria do Patrimônio Imobiliário e Meio Ambiente da PGE-PI, explicou que, em 1920, durante a Conferência de Limites Interestaduais, foi assinado um acordo (Convênio Arbitral) entre os Estados do Piauí e do Ceará. Este acordo foi firmado com o Presidente Epitácio Pessoa e nele ficou estabelecido que engenheiros de confiança do governo da República fariam um levantamento topográfico do trecho da causa.
“Como esta demarcação nunca foi realizada, no início dos anos 2000 o Estado do Piauí buscou solução amigável para a demanda, sendo constituída comissão composta por Deputados Estaduais das partes que, por diversas vezes esteve reunida com vistas celebração de novo pacto objetivando solucionar a problemática. Restando infrutíferas as tentativas de acordo, o Governador do Estado do Piauí autorizou, por escrito, que se buscasse o Poder Judiciário para solucionar esse litígio”.
Diante de toda a situação, em 2011 o governo piauiense, na época sob comando do governador Wilson Martins, buscou a Suprema Corte para decidir a questão. Segundo a Constituição, este é o órgão o responsável por solucionar casos de litígio no país.
Após alegações dos dois estados, o STF determinou a realização de uma perícia na região, para definir de quem são as terras. No momento, o Exército Brasileiro realiza a perícia.
Procurado pelo g1, o órgão informou que até o momento foram realizadas “pesquisas bibliográficas e históricas, a mobilização e o treinamento do pessoal para o trabalho, bem como as fases internas de planejamento”.
Informou também que foi concluído o Projeto Básico da licitação para o aerolevantamento a ser realizado na área de litígio. Segundo o Exército, as equipes aguardam a incorporação de recursos para as despesas. “Assim, ainda não é possível prever, com exatidão, a conclusão da perícia”, informou.
Ceará quer ouvir a população
A deputada cearense Augusta Brito comentou sobre a perícia. “O Exército fez um levantamento prévio, sem ir a campo, pegando mapas e fazendo uma leitura fria e cartográfica. Por essa perícia, o Ceará estaria realmente perdendo vários municípios para o Piauí; não só a ação que o Piauí deu entrada, que era um pedido bem menor, mas com essa avaliação do Exército, poderia ser ainda maior a possibilidade”.
Segundo a deputada, o Ceará pretende ouvir a população da região sobre o litígio. “Nós estamos fazendo algumas audiências públicas para coletar algumas assinaturas para abaixo-assinado mostrando o sentimento de pertencimento das pessoas que estão diretamente ligadas a esse litígio, que estão dentro dessa briga, e poderão perder alguma coisa ou não”, destaca.
Os investimentos públicos realizados pelo Executivo cearense nos municípios em questão são outro ponto que o Ceará argumenta sobre o território. “A gente também tem um levantamento que foi pedido a todas as cidades, aos prefeitos, de investimento, que pega número de escolas, poços profundos, postos de saúde… Tudo que foi feito pelo estado do Ceará, todos os equipamentos que foram concedidos aos municípios dessas áreas, para fortalecer essa defesa”, reforça a parlamentar.
O que dizem os governos
As Procuradorias Gerais dos Estados (PGE) do Piauí e Ceará acompanham os trâmites judiciais.
A PGE-CE afirmou, em nota, que a ação cível tramita desde 2011 no Supremo Tribunal Federal (STF), e o Estado do Ceará tem requerido as diligências necessárias e apresentado todas as peças jurídicas cabíveis para preservar e defender o direito do Estado do Ceará e sobretudo da população cearense envolvida no litígio. (Leia a nota na íntegra no fim da reportagem)
Já a PGE-PI disse que o estado “fundamenta a pretensão em sólidos argumentos jurídicos, históricos e geográficos. A questão é bastante antiga. A origem remonta a 1870, ano em que a Província do Ceará ‘criou’ a freguesia de Amarração (atual Município de Luís Correia) dentro do território da Província do Piauí. Como pode um Estado criar um Município dentro do território de outro Estado?”, questionou.
E completa: “Não houve uma ‘troca’ de territórios para o Piauí ter acesso ao litoral. Desde a criação do Piauí este sempre teve acesso ao Oceano Atlântico, como todas as demais capitanias hereditárias. Houve uma espécie de ‘compensação’ para o Ceará ‘devolver’ Luís Correia, transferindo Crateús para o Ceará. O mesmo decreto imperial estabeleceu que a Serra da Ibiapaba seria a linha divisória entre os 2 estados, de modo que as vertentes ocidentais pertencem ao Piauí. Portanto, você não pode ainda estar subindo a serra e já se deparar com uma placa dizendo ‘bem-vindo ao Ceará’. Isso não faz sentido”, argumentou o procurador Luiz Filipe.
Nota da PGE do Ceará
Em relação à Ação Cível Originária N° 1831, que tramita desde 2011 no Supremo Tribunal Federal (STF), o Estado do Ceará tem requerido as diligências necessárias e apresentado todas as peças jurídicas cabíveis para preservar e defender o direito do Estado do Ceará e sobretudo da população cearense envolvida no litígio.
Além de todos os argumentos históricos e de documentos autênticos que conduzem a uma interpretação favorável aos limites tal como estão estabelecidos e são defendidos pelo Estado do Ceará, reafirma-se a necessidade da realização de uma perícia ampla no processo, não apenas cartográfica, de tal forma a possibilitar ao Supremo Tribunal Federal se debruçar sobre a dimensão humana da questão e todas as variáveis que lhe são fundamentais, como o estudo dos componentes humano, histórico, cultural, social e econômico.
A PGE-CE tem acompanhado de perto todos os aspectos referentes à ACO N° 1831, tal como a perícia que está sendo feita no momento pelo Exército Brasileiro. O Estado do Ceará, inclusive, estará representado em reunião convocada para esta sexta-feira, dia 7 de julho, pelo Exército. Estarão presentes à ocasião representantes do grupo técnico criado pelo Governador do Estado para subsidiar os argumentos do Ceará na ação judicial.