Por que o U-2 ainda é o melhor avião espião do mundo, 65 anos após sua criação

Reprodução/Lockheed Martin

Mark Piesing
BBC Future

Satélites –e drones– tinham como objetivo substitui-lo, mas o Lockheed U-2 ainda é imbatível em suas funções, voando em áreas em que nenhuma outra aeronave é capaz de operar.
Com uma envergadura quase duas vezes maior do que seu comprimento, o avião espião Lockheed U-2 é uma das aeronaves mais distintas da Força Aérea dos Estados Unidos —e também mais difícil de pilotar.
A fuselagem fina de 19 metros de comprimento, as asas de planador e o motor potente são projetados para lançar o avião a uma altura de mais de 70 mil pés (21 km) ? e, essencialmente, mantê-lo lá.
Apelidado de “Dragon Lady”, o U-2 opera em tal altitude e com uma margem tão pequena entre sua velocidade máxima e sua velocidade de estol, que os pilotos chamam sua altitude de cruzeiro de “canto do caixão”. E nessas condições realizam missões que duram horas seguidas.
O design esguio da aeronave às vezes é difícil de observar. Frequentemente, ela está coberta de cápsulas, antenas pontiagudas, protuberâncias misteriosas e cones frontais (ou de nariz) que escondem os sensores, radares, câmeras e equipamentos de comunicação de que necessita para completar suas missões.
Esses diferentes sensores podem ser conectados ao avião quase como se estivessem montando uma maquete. Há uma lenda urbana que diz que uma dessas protuberâncias ou cápsulas contém um dispositivo de camuflagem —um sinal eletrônico que torna o U-2 invisível ao radar.
A 70 mil pés ou mais, o “Dragon Lady” ainda tem a estratosfera em grande parte só para si, assim como em seu primeiro voo há 65 anos.
A essa altitude, o piloto é mais um astronauta do que aviador. Na cabine pressurizada e semelhante a um casulo do U-2, o piloto respira 100% de oxigênio —usando um traje pressurizado volumoso e um enorme capacete esférico. Alguns elementos deste uniforme podem ser encontrados em trajes espaciais em uso hoje.
No ar tão rarefeito, as margens entre viver e morrer são estreitas. Na verdade, o piloto enfrenta o perigo constante da hipóxia (falta de oxigênio) e da síndrome de descompressão induzida pela altitude.
Como qualquer avião, o U-2 tem que voar rápido o suficiente para que não estole (perca sustentação), e não tão rápido que se desmantele —o desafio para o piloto do U-2 é que a 70 mil pés, pode haver apenas algumas milhas por hora de diferença entre as duas velocidades. Uma esbarrada acidental nos controles da aeronave pode significar um desastre.
Próximo ao solo, os controles mecânicos do avião, fáceis de manipular em grandes altitudes, exigem força muscular.
O design leve do U-2 torna o avião suscetível a flutuar sobre as pistas, arremeter se o pouso for muito difícil e bastante sensível a ventos cruzados.
O trem de pouso no estilo bicicleta, que reduz o peso, torna difícil —e trabalhoso— manter o avião em linha reta e com as asas niveladas à medida que diminui a velocidade.
A visibilidade da cabine é tão limitada que, ao pousar, o piloto precisa confiar nas instruções de outro piloto de U-2 que dirige um carro pela pista acompanhando o avião que está pousando. Esses carros de apoio atingem velocidades próximas a 224 km/h.
“O U-2 realmente atrai o tipo de piloto que quer dizer: ‘Eu piloto o avião mais difícil no inventário'”, afirma Greg Birdsall, subgerente do programa U-2 da Lockheed Martin.
“Eles pegam um candidato a piloto e o colocam em uma aeronave de treinamento com um piloto instrutor experiente no banco de trás para ver como ele reage às características peculiares de manuseio do avião.”
Apenas cerca de 10% a 15% dos pilotos que se inscrevem para participar do programa são aceitos.
Na era da automação e dos algoritmos, é de se imaginar que esses aviões espiões e seus pilotos com “as qualidades certas” são uma relíquia da Guerra Fria —mas não é verdade.
Nos 31 anos desde a queda do Muro de Berlim, o U-2 interceptou vozes e textos, obteve sinais eletrônicos, tirou fotos e usou uma forma especial de radar para capturar imagens digitais.
O U-2 também ganhou novas funções, como a de transmitir dados. Sua capacidade de voar alto no céu significava que ele estava na posição perfeita para passar informações do campo de batalha para o quartel-general.
Nesse processo, ele superou aviões concorrentes e desbancou os satélites de vigilância que deveriam torná-lo obsoleto.
Agora, os 31 aviões U-2 operacionais da frota da Força Aérea americana estão prestes a passar por uma atualização de US$ 50 milhões e ganhar uma nova missão que pode levá-los a voar por mais 30 anos.
“Não vamos desaparecer como programa e estamos investindo pesado para levar o U-2 para o novo ambiente de sua missão”, declarou Irene Helley, diretora do programa U-2 da Lockheed Martin.
“Nesta nova era, não há uma data de expiração planejada.”

O U-2 levanta voo pela primeira vez, em agosto de 1955

Embora não seja uma relíquia, o U-2 é certamente sinônimo da Guerra Fria.
Na década de 1950, o governo do presidente Dwight D Eisenhower foi surpreendido várias vezes com o avanço nuclear da então União Soviética. Isso aconteceu devido à sua lacuna de inteligência.
A União Soviética era uma sociedade fechada, difícil para a CIA, agência de inteligência americana, penetrar. A falta de espiões nos lugares certos significava que o presidente precisava de um avião espião de grande altitude para dizer a ele o que exatamente a União Soviética estava tramando. E ele precisava disso rapidamente.
Como o gênio da engenharia Kelly Johnson e sua equipe trabalhando no departamento secreto “Skunk Works”, como era conhecido o programa de desenvolvimento avançado da Lockheed Martin, a empresa americana contava justamente com o time de profissionais capaz de criar a aeronave.
O mito do “Skunk Works” nasceu quando Johnson e seus engenheiros projetaram e construíram a fuselagem do primeiro jato da Força Aérea americana em apenas 143 dias, em 1943. No fim de 1954, eles começaram a trabalhar neste misterioso avião espião.
O avião teria que manter o voo acima de 70 mil pés, ter um alcance de 4,8 mil km e ser capaz de transportar 212 kg de equipamento.
O U-2 voou pela primeira vez apenas oito meses depois, em 1º de agosto de 1955, em um local remoto em Nevada, hoje conhecido como Área 51. Estava claro que Johnson e sua equipe haviam criado algo especial.
“O U-2 marca o início de uma mudança rumo à inteligência técnica, que está resolvendo esses problemas de inteligência não por meio de espiões no estilo John le Carré em solo, mas por meio de tecnologia avançada”, afirma Peter J Westwick, diretor do Projeto de História Aeroespacial do Instituto Huntington-USC sobre a Califórnia e o Oeste americano.
“O U-2 é realmente o primeiro grande salto tecnológico para a inteligência técnica”, acrescenta Westwick, que também é autor de Stealth: The Secret Contest to Invent Invisible Aircraft.
A história do U-2 poderia ter sido muito diferente. Em 1966, seu futuro parecia sombrio —apenas 15 dos 55 U-2 originais construídos ainda estavam em operação. Mas, crucialmente, foi decidido reiniciar sua produção na década de 1980, um negócio complicado quando muitos dos engenheiros originais haviam se aposentado.
Os aviões que saíram dessas linhas de produção reformados certamente pareciam semelhantes ao original, mas eram quase 40% maiores e tinham um novo design modular para transportar mais equipamentos —e mais peso— e trocá-los mais facilmente para diferentes tipos de missões.

Missão de vigilância sobre a União Soviética, em 1956

Os U-2 em operação hoje podem carregar quase três vezes mais peso, voar o dobro da distância e permanecer no ar três vezes mais tempo que a aeronave original.
Na década de 1990, eles foram substancialmente atualizados novamente; e esse processo de modernização continua até hoje.
Ao longo do tempo, surgiram pelo menos cinco substituições possíveis para o U-2. A primeira, na década de 1970, foi a primeira geração de veículos aéreos não tripulados.
Um dos mais recentes é o RQ-4 Global Hawk da Northrop Grumman, com forma de baleia, uma aeronave de vigilância de grande altitude pilotada remotamente. Quando apareceu pela primeira vez em 1998, o U-2 tinha mais de 40 anos. Para pagar pela atualização do U-2, 24 Global Hawks terão que ser descartados.
Com o Global Hawk deixado de lado, a evolução do U-2 poderá dar o próximo passo.
As mudanças no avião incluirão uma aviônica melhor, uma cabine com tela touchscreen (que você pode usar com um traje pressurizado) e um novo computador de missão que permitirá que o avião execute o novo Open Mission System (OMS).
O OMS permitirá que aeronaves como o U-2 se comuniquem facilmente com os sistemas de computador de tanques, navios, aeronaves, satélites e até mesmo armas cibernéticas.
Até agora, a experiência do U-2 tem sido proveitosa.
“Ele tem um desempenho comprovado em alta altitude”, diz Helley.
“Há também o reconhecimento de que suas fuselagens ainda são basicamente adolescentes. Restam a elas cerca de 80% de sua vida útil de design.”
Além disso, as plataformas tripuladas também são muito melhores para lidar com surpresas do que os computadores.
“Se você olhar para os recursos de vigilância espacial e de alguns dos outros tipos, eles dependem em grande medida de planejamento prévio para fornecer as informações necessárias. Em contrapartida, o U-2 está sempre disponível e pode estar pronto a qualquer momento.”
“O que sempre me perguntam é: Por que os satélites não podem fazer o que o U-2 faz?”, diz Chris Pocock, ex-jornalista de aviação e autor de livros sobre o U-2.
“Bem, eles têm recursos fantásticos agora, mas uma trajetória orbital previsível. Isso significa que os satélites espiões da órbita baixa da Terra não ficam em nenhuma área por muito tempo, enquanto o U-2 pode permanecer por um longo tempo em um local específico.”
Os satélites também estão cada vez mais vulneráveis a medidas de defesa, como lasers que podem cegar satélites espiões, interferências ou até mesmo mísseis que podem danificar ou destruir um satélite vital.
O U-2 contribuiu como precursor no uso de enlace de dados (data link) para transmitir inteligência para estações terrestres que podem estar a milhares de quilômetros de distância, enviando o sinal primeiro para um satélite acima dele.
Agora esse papel se tornará ainda mais importante diante da ambição da Força Aérea americana de que todos os seus computadores, independentemente da empresa que os fabrica, sejam capazes de se comunicar entre si. Novos sensores ou câmeras devem ser adicionados e removidos da aeronave de forma mais rápida e barata do que nunca, à frente de seus concorrentes.
O U-2 tem um problema: não é particularmente invisível. E isso significa que não pode voar sobre o espaço aéreo de outros países sem seu conhecimento. Um avião U-2 foi recentemente detectado por militares chineses sobrevoando seus exercícios militares no Mar da China Meridional.
Agora parece que a empresa de defesa americana Northrop Grumman construiu uma pequena frota de drones ultrassecretos que se parecem com seu bombardeiro B-2 para fazer exatamente isso. Alguns acreditam que eles podem substituir o U-2.
Esses drones de reconhecimento de grande altitude e longa duração, que ainda são mantidos em sigilo, popularmente chamados de RQ-180, devem ter dispositivos de camuflagem, já que apenas uma “possível” foto estranha apareceu até agora, um feito surpreendente na era digital.
Embora o dispositivo de camuflagem seja uma peça fictícia de tecnologia que permite que aviões ou espaçonaves se tornem invisíveis, o drone ultrassecreto é conhecido por sua cor clara incomum que o tornaria difícil de localizar. Isso rendeu a ele o apelido de “Grande Morcego Branco”, ou de forma mais rebuscada, “Shikaka”, o morcego branco sagrado do filme Ace Ventura 2.

U-2 a bordo do USS América (CVA-66), em 1969

“Tudo o que eu disser deve ser considerado provisório”, diz Pocock.
“Deve ser muito discreto se vai entrar em território não-autorizado e fazer o que o U-2 faz em território amigo, mas não acho que vai substituir o U-2 porque aparentemente é incrivelmente caro. Não estão fabricando muitos [apenas sete] e pode não haver muitas ocasiões em que eles consigam obter permissão para voar.”
Os microssatélites representam uma ameaça maior para o futuro do U-2. Pesando entre 10kg a 100 kg, eles são pequenos o suficiente para serem lançados de aviões espaciais como o Boeing X-37.
“Esses microssatélites podem ser lançados em quantidades tão grandes, a partir de um único lançamento de foguete, que começam a superar as vulnerabilidades dos satélites espiões em órbita baixa da Terra”, afirma Pocock.
“Se você tem 10 ou mais satélites girando ao redor da Terra em cadeia, então você está revisitando o mesmo lugar na Terra em horas, e não dias”, explica.
No entanto, Helley está confiante de que o U-2 vai escapar das ameaças de futuros concorrentes tão bem quanto fez com as anteriores.
“O que mais funciona no ambiente em que o U-2 opera?”, questiona ela.
“Vemos o U-2 como uma Estrela do Norte em uma constelação muito grande de compilação e disseminação de informações em tempo real.”
“É um ambiente muito, muito difícil de operar”, acrescenta Birdsall.
“Tentar desenvolver algo para ocupar o seu lugar, ou mesmo complementá-lo naquela altitude, não seria rápido, não seria fácil e seria muito caro. Quando você já tem a capacidade que temos, por que fazer isso?”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
UOL/montedo.com

3 respostas

  1. Excelente matéria.

    Dados de especificações completa.

    Só faltou um dado:
    – o preço, estou interessado, pode até ser usado, desde que em bom estado.

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