O Falso Inimigo dos Tenentes

*Péricles da Cunha
Podemos dizer que integramos a geração dos Tenentes de 64, daquela geração que foi forjada nos anos quentes da Guerra Fria.
E esta geração lembra muito a figura do capitão Giovanni Drogo, a figura central do excelente “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati. Desde que li esse livro, lá nos anos 80, é que vejo no capitão Drogo o retrato do Tenente de 64.
O livro, escrito antes da Segunda Guerra Mundial, conta a desventura do oficial Giovanni Drogo, o qual, aos vinte anos, é nomeado, em seu primeiro posto, para o forte Bastiani, que se ergue imponente e solitário às margens abandonadas do “deserto tártaro”.
Drogo, que espera ficar ali poucos meses, aguardando uma transferência, vê a vida transcorrer sem que sua razão de ser se realize: “transformar-se num soldado verdadeiro, conhecer a glória de participar de uma guerra que, tudo indica, não vai acontecer….”.
No romance, o jovem tenente Giovanni Drogo, chega numa manhã de setembro ao seu primeiro posto militar: o Forte Bastiani, para o que deveria ser uma curta temporada de quatro meses e que termina sendo a história de uma vida frustrada. O jovem tenente Drogo, preso de uma angústia indefinível, quer voltar a sua cidade próxima, chegando mesmo a participar de uma ridícula audiência para transferência, sem êxito; porque há algo indefinível que o força a ficar. Drogo tinha um sonho, sim, mas nada fez de concreto para realizá-lo.
O sonho de um ideal de heroísmo militar, de uma carreira e uma vida inteira dedicada à caserna é dissipado com um dia-a-dia rotineiro – em meio à disciplina e as atividades do quartel – do refeitório ao jogo de cartas e de xadrez etc.
E a rotina no forte Bastiani o retém até que a velhice o capture, impotente para reagir ao inimigo real, de forma mais intensa e devastadora do que o invasor que chega: a vida que não se realiza.
O Deserto é o romance de um jovem oficial que passa a vida inteira, frustrado, numa fortaleza de fronteira, esperando o ataque de inimigos que talvez não existam. De um personagem em sua eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória.
Este livro, lido há mais de trinta anos, marcou-me muito e traços dele podem ser notados ao longo de tudo que escrevi sobre o papel que nós, militares, deveríamos assumir no pós-regime militar. Como disse um crítico: “O Deserto dos Tártaros é um livro para ou te fazer mudar de vida ou para abandonar essa, dada a profundidade do tema tratado”. Trata-se de uma aguda reflexão sobre a inutilidade do poder.
“Afinal, Buzzati nos conta um pouco da vida de todos nós. Você não tem a impressão que, às vezes, está esperando algo acontecer para mudar de vida? Que esse algo está ali, logo ali, virando a esquina, mas você nunca chega à esquina? E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças?”, continua. Essa a grande lição deste magnífico livro: você é o único responsável pelas mudanças!
De uma crítica, das muitas que colecionei sobre o livro: “O final do livro emociona os que acompanham toda a vida de Drogo dedicada ao forte. De certa forma nos remete aos dias atuais em que muitos se dedicam obstinadamente a objetivos ilusórios, passam sua juventude lutando por um sonho e deixam de viver a vida verdadeiramente. Depois da leitura podemos nos questionar: o que ando fazendo da minha? Pelo quê ando lutando? Em pleno século XXI, se ainda não temos respostas, pelo menos conseguir formular mais claramente nossas perguntas…”.
Assim como Drogo, o jovem Tenente de 64, tinha um sonho bem expresso por um do integrantes desta geração, na sua despedida do serviço ativo, como oficial general: “A formação da minha geração foi pautada pela constante preparação para o combate. Víamos a possibilidade de emprego assim que saíssemos da Academia”.
Uma espécie de vaidade militar, misturada ao desejo de uma carreira heróica, e ao fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, pelo deserto dos Tártaros – selvagem e desolado – molda uma espécie de areia movediça em que o personagem se afunda, lenta e progressivamente, até ao final nada heróico. Tudo conspira para que Drogo fique de olho voltado para o deserto, de onde pode partir o fato que mudará sua vida.
O fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, um fascínio pelas guerras dos outros cujos inimigos e cenários eram e são bem diferentes dos nossos. “Testemunha ocular do planejamento estratégico militar dos EUA, antes e depois do 11 Set 2001. Vi um fantástico estado de prontidão para a guerra”, relembra o general sobre a sua primeira missão nos USA.
Eu tentei fazer com que não nos transformássemos em uma fábrica de Drogos. Um desperdício. Uma geração perdida.
Em 1991, fui convidado para fazer uma conferência na IX Conferência Continental da Associação Americana de Juristas, precursor do Fórum Social Mundial: coronel recém punido por entrevista no JB, achavam que estaria ali uma oportunidade para “bater nos milicos”.
Defendi um novo papel, ajustado às nossas demandas e recursos. Mostrei que não tínhamos os bilhões que o Saddam Hussein havia gastado para montar um exército que acabava de ser triturado na Guerra do Golfo, mas que nada nos impedia de sermos astutos.
Aquela poderosa máquina de guerra dos Estados Unidos dependia da opinião pública americana, dependia dos contribuintes para se mover. Bastaria que não déssemos razões para que fincassem o pé em nossas imensas riquezas minerais, escasseadas com as incertezas do desmanche da URSS.
Meio ambiente, índios e narcotráfico, três razões que poderiam sensibilizar os contribuintes americanos a autorizar aventuras em nosso território. Bastavam políticas inteligentes nessas três áreas.
O resto seria se dedicar ao nosso grande inimigo: a miséria. Evitar que se transformasse em combustível para agitação social e para o surgimento desses que aí estão. Em vez de armamentos modernos, preconizava o emprego da política do “forte apache”, da idéia dos pólos do general Rodrigo Otávio, da ocupação dos bolsões de miséria. Lembro-me que quase fui linchado na tal conferência. Chegaram à conclusão de que eu estava sugerindo abortar movimentos como o dos sem-terra. Acabar com as razões que as ONGs alardeavam pelo mundo para pressionar pela demarcação de reservas indígenas. Acabar com a massa de manobra que a Esquerda disputava com traficantes nas favelas.
Desnecessário provar que teríamos feito uma revolução, a revolução que não fizemos nas décadas anteriores. Teriam, os Tenentes de 64, feito a revolução silenciosa que os Tenentes de 22 não conseguiram.
Por tudo isso, entristeço-me quando vejo que estamos envelhecendo sem ter, pelo menos, encaminhado a construção daquele Brasil dos nossos sonhos de cadetes.
Lamento ver um potencial, como o desta geração de Tenentes de 64, ser desperdiçado na “eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória”. Focada no inimigo errado.
No fundo, fica aquela frase do crítico citado lá no início, a tocar a consciência de todos nós: “E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças”. Mudanças que não passam por combater comunistas, mas corruptos que, da mesma forma, querem assaltar o Estado, mas para se locupletarem.
No fundo o que este texto deixa é que tanto os Tenentes de 64 como o tenente Drogo desperdiçaram suas vidas porque não souberam mudar de inimigos como aconselhava Roberto Campos (in, “Reflexos do Crepúsculo”); “Saber mudar de inimigos é não só uma receita de sobrevivência como, às vezes, uma receita de sucesso”.
* Cel R1 do Exército
DefesaNet/montedo.com

4 respostas

  1. Excelente texto… Me faz refletir que já passei 13 anos da minha vida acreditando em coisas que nao existem e marchando no passo errado, achando estar fazendo o certo. Nesta curta carreira, vi quem deveria controlar desconto em férias se utilizando do cargo para deixar de publicar seus próprios desconto em férias e assim gozar quase 2 meses de férias por baixo do pano. Vi general desertar e abandonar o comando por nao ter sido promovido a general de exército, queimar a farda e o bastão de comando e mandar um "se vira" para seu chefe de estado maior. Vi cel indicando uma parente grávida para oficial temporário. Esta, mesmo sem nada saber, era carregada nas costas por Subtenentes e Sargentos, que nuncam terão as regalias de ser um chefe, mesmo sendo eles que comandavam a sessão. Vi esta mesma tenente, que entrou grávida, ser promovida e entrar com licença gestante por 6 longos meses, recebendo dinheiro público sem nada fazer ou produzir. Vi muito S ten e sgt formado fazendo trabalhos especializados, apenas para o chefe assinar e ganhar os louros pelo trabalho destes, que nunca foram gratificados por seus esforços para concluir um curso superior… vi of tirando soldados do sv de gda dos quarteis para trabalhar a noite em seus pnr, deixando a segurança do quartel comprometida, pois queria que seu pnr fosse transformado em um palácio, com direito a uma palmeira bem na frente, troca de piso, pq sua esposa nao gostou do que veio no pnr, enquanto o pnr dos sgt estava com risco de desabar com todos seus ocupantes dentro. Vi muito cap e maj, mesmo escalados para formatura, passando a bola para of mais modernos, que já haviam cumprido com suas escalas de formatura. Vi muito of superior dando chave de estrela em of médicos para poder repetir taf e ficar fora de formaturas… e queimei meu filme, impedindo, mesmo como sgt que estes fossem inspecionados de saúde por médicos mais modernos, encaminhando-os para serem especionados por juntas médicas… defendi cabo da guarda que seria preso pq um soldado compulsado para o serviço, deu um disparo no alojamento intencionalmente e o Of de dia interpretou que o cb não havia adotado os procedimentos de segurança,vi General da reserva, ao dar palestra, perguntar se havia praças na assistência e assim que confirmado, mudar totalmente o foco da mesma, passando a falar apenas amenidades e, por enquanto, ainda vou ver muita coisa acontecendo e vou continuar marchando no passo errado, pois me recuso a ser um desses fracos, desonestos e injustos… não se trata de Of X Praças, trata-se de hombridade, honestidade e visão de conjunto. É preciso nos unir… a diferença entre of e praças é funcional e muitas vezes, apenas de oportunidades… devemos deixar de ser vistos e separados por castas… Todos pertencemos a um só exército… e que seja um exército voltado para o bem, o nosso bem e o bem da sociedade… Em um exército de verdade, poucos se sacrificam em benefício de muitos… hoje em dia vemos justamente o contrário. Poucos se beneficiando do sacrifício de muitos… espero que logo isso mude, pois até para os que estão no topo (of superiores), haverá ranger de dentes… 2ª Sgt Typhoon

  2. Concordo plenamente com o seu depoimento, Sgt Typhoon! Eu tb sou testemunha de muitas mazelas que ocorrem descaradamente na vida da caserna, onde oficiais se valem dos ultrapassados e incoerentes regulamentos para obter vantagens. Não entra na minha cabeça, por exemplo, que o auxílio fardamento seja pago a cada 3 anos, se uma farda tem durabilidade anual, bem como, esse auxílio ser pago com base no soldo do militar, ou seja, quem gasta mais farda (3º Sgt), recebe bem menos do que um coronel, por ex, que não participa de atividades que causam maior desgaste da farda. Outro exemplo são os PNR, que em todas as guarnições pelas quais passei, sempre tem disponível para os OF (em algumas,inclusive, para Of solteiros) e os pobres dos Praças, que ganham menos, ainda tem que pagar aluguel. No meu quartel estavam querendo cortar o vale-transporte de quem estava vindo de carro, moto e até de bicicleta! O "Cmt" alegou que a legislação não cobre meio de transporte particular. Ele é mais um pobre oficial que interpreta a lei ao pé da letra. Sem falar que eu gasto 228,80 de transporte em 22 dias, sendo que eu sou ressarcido apenas em 52,00. São tantas discrepâncias e moral de cueca que se eu fosse citá-las todas, preferiria escrever um livro.

  3. Concordo plenamente com nosso amigo Typhoon, suas palavras soam como um verdadeiro tufão perante nossa realidade, faço das suas as minhas está de parabéns

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