Única família autorizada a usar barba no Exército encerra tradição centenária

General Theophilo barbado

Quinto da geração de Manoéis Theophilos abandonou destino militar para viver de música


CÉZAR FEITOZA

Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Filho é neto de Manoel Neto. Seu bisavô é Filho e também homônimo de outros cinco Manoéis de sua árvore genealógica. As tradições da família Theophilo estão enraizadas no Brasil Império e se confundem com a história do Exército Brasileiro.

Única família autorizada a usar barba no Exército, os Theophilos encerraram a lenda do militar barbado —após o primeiro Manoel de cinco gerações decidir trocar o destino militar pela música.

O primeiro Manoel Theophilo brasileiro (1816-1859) nasceu em Fortaleza (CE). Era filho de comerciante português e, no Brasil, foi político influente, prefeito de sua cidade natal em 1849.

Entre seus 14 filhos, escolheu um para dar o próprio nome. O segundo Manoel (1849-1894) foi o primeiro militar da família. Como coronel, comandou a Guarda Nacional de Fortaleza. Depois foi para a política e presidiu a Câmara Municipal de Fortaleza até a Proclamação da República, em 1889.

Os únicos registros da imagem de Manoel —o segundo— mostram as barbas e bigodes longos em momento em que o cultivo de pelos faciais ainda era incentivado pelas normas do Exército.

Manoel Theophilo Filho encontra o pai, que havia saltado de paraquedas em cerimônia militar – Arquivo pessoal

O segundo Manoel teve o terceiro, Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Filho (1885-1941); como sua esposa não conseguia engravidar, Filho decidiu adotar o próprio sobrinho, Manoel Theophilo Neto (1924-2008), para manter a tradição.

Neto seguiu a carreira de toda a família e chegou a ser promovido a general em 1979, durante a ditadura militar. Ele foi o primeiro a pegar a transição das normas internas do Exército, que passaram a proibir o uso de barba após a Primeira Guerra Mundial.

“A barba foi totalmente proibida […] porque você não pode vedar o rosto com uma máscara de gás usando barba. Até consegue: você passa vaselina e põe a máscara. Mas é uma coisa complicada. Usavam muito gás venenoso [na Primeira Guerra Mundial] e você não vai perder tempo passando vaselina. Então a ordem foi que se fizesse a barba”, disse Homero Adler, doutor em história pela UFRJ e estudioso sobre os costumes militares.

A regra passou a entrar em vigor no Exército no fim da década de 1920, quando uma comitiva do Exército da França veio ao Brasil contratada para profissionalizar a Força brasileira.

Foi só com a norma já estabelecida e fiscalizada que entrou nas fileiras do Exército, em Fortaleza, o cadete Manoel Theophilo (1950) —o quinto da família, quarto militar.

Ele contou à Folha que não usava barba no início da carreira porque tinha receio de contrariar os chefes ainda como cadete. Manoel só se encheu de coragem quando o ministro do Exército fez uma revista numa fila de militares em Natal e encontrou Theophilo, já tenente, com o bigode fora dos padrões.

“Eu tinha botado brilhantina, mas, com muito tempo no sol, aquilo arriou. Eu disse: ‘Ministro, eu queria pedir permissão a vossa excelência para usar barba’. Ele olhou assim para o meu nome e disse: ‘Você é o que do Theophilo?’. Eu disse: ‘Do de barba, eu sou filho’.”

O pedido para deixar a barba crescer só foi formalizado seis anos depois, em 1982, quando Manoel era capitão e enviou um requerimento para o ministro do Exército, general Walter Pires de Carvalho e Albuquerque.

Um inquérito foi aberto para investigar a tradição barbada dos Theophilos. Pediram fotos, pinturas e os registros mais diversos, para comprovar que os pelos na cara seriam uma característica centenária.

“Considerando a arraigada e comprovada tradição familiar de cinco gerações, que obriga os varões com o mesmo nome do requerente a usar barba, dou o seguinte despacho: deferido, em caráter excepcional”, dizia o despacho de Albuquerque publicado no Boletim do Exército em 22 de março de 1982.

Ao tempo em que ganhava fama como capitão barbado, Manoel Theophilo viu crescerem resistências entre colegas e chefes. “Mesmo quando eu já era oficial superior, estranhavam, perguntavam por que eu não tirava a barba, e eu dizia que era tradição de família e não prolongava muito a conversa”.

Manoel Theophilo, o quinto, era casado com Ana Virgínia. O casal teve três filhas na década de 1980 —nada de nascer um menino, para seguir a tradição. Depois de uma quarta gravidez traumática, eles decidiram encerrar as tentativas.

“Um dia, eu e meus irmãos, tomando uma cerveja, eu disse: ‘Eu só vou ter menina, então um de vocês bota o [nome do] filho de Manoel’”, disse.

Meses depois da conversa, Ana descobriu uma nova gravidez —a primeira não planejada. Nasceu em 1988 o Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Filho.

Filho teve uma típica criação de filho de oficial do Exército. Mudou-se mais de dez vezes de cidade até os 20 anos, estudou em Colégios Militares e acompanhou o pai quando foi nomeado adido militar em Bogotá, na Colômbia.

Manoel Filho morou fora do país quando a TV Globo começou a transmitir a minissérie da Chiquinha Gonzaga: história de uma jovem, filha de militar, musicista com ideais libertários.

“A personalidade daquela mulher me chamou muita atenção, porque era uma mulher completamente disruptiva, que era filha de militares também e não aceitava se casar com o homem que o pai escolheu. E aquilo sempre me deixava: ‘Nossa, que legal, olha como ela segue o próprio caminho’”, disse Manoel Filho à Folha.

A personagem interpretada por Regina Duarte inspirou Manoel Filho a estudar música. “A abertura da minissérie era um piano, a câmera passava assim filmando o piano, a mão da pianista no teclado. Eu falei: ‘Pai, eu quero aprender a tocar piano’”.

Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Filho e professora Andréia, do Colégio Militar do Rio de Janeiro, segurando caderno com imagem de Che Guevara – Arquivo pessoal

As primeiras músicas tiradas por Manoel foram num teclado infantil, de duas oitavas. Ele conseguia interpretar melodias de ouvido, sem ler partituras. Os pais viram que o menino levava jeito e o colocaram em uma aula de teclado.

Aos 16 anos, Manoel percebeu que precisava decidir o que queria fazer da vida. Podia tentar a carreira militar e, para isso, teria de fazer uma prova para entrar na EsPCEx (Escola Preparatória de Cadetes do Exército).

Mesmo tocando piano desde os 11, o filho do general não conseguia ver outras alternativas de profissão.

“Eu conversei com a minha professora de piano e disse que estava angustiado com a prova. Ela falou: ‘Você quer ser militar?” E eu respondi: ‘Eu não sei, acho que sim, não era isso que estava escrito?”

Manoel Filho conta que havia uma “pressão da história” para que ele fosse militar, usasse barba e seguisse a tradição centenária dos Theophilos. Os pais Manoel e Ana, a contragosto de amigos e familiares, deixaram o filho livre para escolher a profissão.

“O piano, para mim, desde que eu comecei a estudar, sempre foi uma válvula de escape. Nunca pensei em levar a sério profissionalmente. Naquele momento que a professora me disse que era uma possibilidade, eu comecei a pensar a respeito […] e no terceiro ano eu já estava decidido”, completou.

Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Filho virou professor de piano – Arquivo pessoal

Filho, professor de piano aos 36, não pretende ter o Neto. Mais velhas, as irmãs também não planejam ter novos filhos só para colocar o nome de Manoel Theophilo e manter a tradição na marra. O Exército não terá mais barbados.

“[A tradição] Vai acabar. Foi uma coisa que ocorreu naturalmente. Cada Manoel botava o nome Manoel no filho. Os primeiros botavam até o nome Manoel porque o pai morria muito cedo e a mulher, já grávida, nomeava em homenagem. Foi uma tradição que foi acontecendo naturalmente —tão naturalmente que agora acabou”, filosofa Manoel Theophilo, pai do Filho.

FOLHA

40 respostas

  1. Sinais dos tempos….
    Certa vez ouvi de um Sgt da pE que antigamente oficiais eram considerados lord’s, eram da linhagem real, sendo portanto uma honra ser oficial militar de qualquer força…

    Mas hoje os tempos mudaram, e o que conta é o vil metal, se você disser num grupo de amigos empresários que é oficial, se torna não um motivo de orgulho, mas de vergonha pelo desnível criado pelo sistema econômico, pois os salários deixaram descer atrativos faz muito tempo!!!

    Deve ser esse fator financeiro até fez o theophilo deixar a carreira de oficial pela carreira artística, pianistica e milhonaria, se souber EMPREENDER corretamente!

  2. Se tem oficial correndo para o mundo digital, influencers e coisa e tal. Imagina as “tradições”.

    Por mim, acabava logo com o excesso de formatura pois temos mais o que fazer.

      1. Depois de 15 anos no EB pedi demissão em janeiro de 2022 e estou realizando o meu sonho no exterior, na carreira da programação. Turma de 2011 da AMAN.

  3. Conheço outro caso em tempos mais recentes de oficial Do EB com barba. Aconteceu dele queimar o rosto durante um Churrasco e para recompor a pele por completo foi solicitado por médico deixar a barba crescer. Para isso recebeu Autorização Especial do Comandante do Exército e assim mantendo por pouco mais de um ano. Esse militar chegou ao posto de general e hoje se encontra na reserva.
    (Essa pagina obriga a se usar letra Maiúscula no inicio de TODA palavra !!!)

  4. Trabalhei com o general pai do pianista na 8° região militar. Todos ficaram curiosos em ver pela primeira vez um coronel barbudo . Mas depois ficamos sabendo da tradição e história da família. Na época eu era cabo do exército.

  5. Definitivamente, há dois tipos de seres em todos grupos humanos e animais: os guerreiros e os não guerreiros!
    Os guerreiros nascem com a imperativa vocação de defender os fracos e os não guerreiros.
    Os Guerreiros gostam da adrenalina dos desafios e perigos, das lutas e competições, adoram os desportos a prática da educao física.
    por isto, seu habitat natural está no seio das Forças Armadas, no militarismo.
    Com certeza, há muitos guerreiros no meio civil, que nunca serviram as Forças Armadas, aqueles que surgem nos momentos em que a nação os convoca para sua defesa.
    “Um verdadeiro guerreiro nunca desiste, mesmo diante das adversidades. Guerreiro é feito de fé, de força e, especialmente, de muita coragem.”
    PS: os filhos de militares, não vocacionados À vida militar, conhecem na pele as agruras e a dura realidade de ser militar.

    1. Eu nao tenho vocacao nenhuma.
      To aqui pelo dinheiro e pela reserva aos 51 anos.
      E se quisesse ser guerreiro, iria para a PMERJ ou PF.
      O maximo de guerra que vi foi a guerra da faxina.
      Apesar de nao ter vocação nenhuma, faço meu trabalho direitinho, nunca fui punido, etc.
      É isso, apenas um serviço público bem tranquilo, formatura, formar soldado, uma vez caiu um balão no pátio do quartel, acho que foi o dia mais emocionante da minha carreira ver aquele bichão descendo.
      Agora é só esperar.

      1. Vc está certíssimo amigo, e como você existem muitos na força. Vc não está só, kkkkkk deixa os “guerreiros”, imaginarem que fazer pou pou, cri cri e faxina os tornam especiais, falando em especiais, só não pode aparecer um PF, senão desmaiam. Kkkk

  6. Assim que se destrói uma sociedade, acabando com tradições e crenças, Tipo o que os Jsuítas tentaram ou fizeram com os índios brasileiros, de general a tocador de piano! Ainda bem que somos covardes o bastante para não infiarmos o nariz em guerras, já pensou como nos seria útil tais profissionais musicais!.

  7. Não sou a favor de manutenção da linhagem, quase sempre as gerações subsequentes jamais chegam aos pés do primeiro. Ex: filho de Nelson Pique uma M, filho de Galvão Bueno outra M, filhos de artistas quase sempre uma B, e assim sucessivamente. TC CID Filho de general casou o P.

  8. Muito interessante a reportagem. Sempre tive curiosidade de entender essa tradição. Uma pena que acabou. Ao mesmo tempo, sou a favor do Manoel seguir a sua vocação. Quem sabe um neto não a faça ressurgir?

  9. Ja podia ser major ganhando seus 23 mil e visando a reserva.
    É professor de piano.

    Tem gente que nao entende como isso é bom. Pessoas que não tem a menor noção de como o mercado é concorrido e mal remunerado.

    Deve ficar o remorso de não ter obrigado o filho.
    Mandem seus filhos para as escolas militares. A coisa ta feia aí fora

    1. Tá louco anonimo ? Quem tiver condições junte seu dinheiro, aposente sedo e pique a mula com seu filho do Brasil, indo pai e mãe com ele para a europa, talvez o mlk não precise ser faxineiro, coisa que de for vai viver melhor que oficial subalterno das forças armadas.

      1. Um major ganha isso sim, desde que tenha altos estudos.
        É o mesmo salario de um delegado de policia federal (concurso de nivel superior que ocorre de 5 em 5 anos).
        Realmente se puder ir embora do país, melhor.
        Mas se ficar, concurso publico é o caminho de quem nao é herdeiro. E no universo dos concursos, os militares são fabulosos:
        Aposentadoria integral e vitalicia muito cedo, tudo garantido, 500 vagas por ano.
        Quem tem filho na casa Dos 20/30 sabe do que falo.

    2. Não sei de onde você tirou essa história de major ganhar R$ 23.000,00! Kkkkkkkk Sabe nada! Sou oficial da FAB e sei o que falo. Major ganhar 23 mil…. rs rs rs rs

      1. Não é? Fico impressionado como tanta gente fala besteira sem saber com uma convicção de dar inveja…kkk… Pelo visto que não sabe até hoje a diferença entre salário bruto e líquido, que militar paga FuSEx. IR, etc…

        1. A gente fala de bruto amigo.
          Todo edital de concurso vem o salario bruto.

          Quer comparar líquido?
          Seus descontos obrigatórios sao MENORES que de um servidor civil, sabia disso?

          Quando você lê no jornal a remuneração de um servidor, aquele valor é bruto, ok? Até pq a remuneração líquida é individual, cada um com seus consignados.

          Meu deus, quanta ignorância… parece que as pessoas vivem alienadas nesse mundo de FFAA.

      2. Maj 22 mil, Cap QAO ChQAO (CT AFN/AA, Cap Especialista FAB + 10% permanência) aprox 22mil – sou um desses!. Valmur: Isso é Salário Bruto. Liquido cada um tem o seu, em linhas gerais de 15 a 16 mil Lqdo, Mas depende muito de cada um, dependentes , emprestimos etc. Entendeu agora ?

        1. Esses indivíduos devem achar que quando falamos em teto do funcionalismo, que é o salário dos minjstros do STF, é líquido.

          Naaaaaao, aquilo é bruto! O salario que aparece nos editais de concursos é o valor bruto.

          Fico vendo, esse pessoal é alienado, eles vivem para coisas de quartel

  10. Sem lógica. As Forças Armadas, como instituição pública, estão acima das tradições familiares. Não se pode transformar um bem público em propriedade particular, como tradições hereditárias.

  11. Tradições como essa não acabam, adormecem até o momento do resgate por um descendente da linhagem pois o DNA está aí impregnado nesse amontoado de células. O Teophilo Filho, pianista, não nega isso pois carrega na conduta a marca dessa família, a de se destacarem naquilo que se propõem a fazer pois enfrentar um piano aos 11 anos é para poucos, exige disciplina e muito esforço.

    Quanto ao pai, o Teophilo Neto, como sargento trabalhei próximo a ele, sem sombra de dúvidas o oficial general de mais fácil trato com subordinados, ou superiores e pude presenciar a maneira com a qual ele se dirigia tanto a outro general ou um praça de pré, o tratamento era idêntico na competência e na educação, inclusive aceitando o assessoramento de subordinados sobre assuntos técnicos dos quais não tinha pleno domínio.

  12. Servi com O Gen Theophilo (o pai aí da reportagem) em Salvador em 1992. Um dos melhores oficiais que conheci. Correto, disciplinado e disciplinador. Uma pena ele não ter chegado a promoção de General de Exército. Ele tem vários irmãos militares, generias e coronéis. Todos na reserva. Se não me engano ele tem sobrinhos que ainda estão na ativa, mas não tem direito a usar barba.

  13. Autorizar o uso de barba para determinada família, por questão de tradição, mostra que não é de hoje que os oficiais se consideram “donos” do Exército. Sendo uma instituição pública, a vontade e benevolência de um general não pode ser direcionada a uma determinada família, por mais tradicional que seja. Ou todos podem usar barba, ou ninguém pode.

  14. Meu avó, era Manoel Theophilo Pinto, não foi militar e não usava barba. Mas, tinha algo em comum. Retidão, honesto, justo,e acima de tudo, era temente a Deus.

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