Para governos, uso de drones projeta ideia de que guerras terão ‘custo grátis’, diz historiador

rone MQ-1 Predator (USAF)

Max Hastings diz que redução do número de mortes de soldados estimula entrada em conflitos

Afegão olha para os destroços de carros e casas que restaram após um drone americano bombardear uma vila no Afeganistão – Hoshang Hashimi – 18.set.21/AFP

Rafael Balago
WASHINGTON

A imagem de caixões com soldados voltando mortos do exterior faz com que muitos americanos não queiram que os EUA disputem novas guerras. Mas o avanço do uso de drones reduz o risco de cenas assim, o que pode estimular mais conflitos no futuro avalia o historiador britânico Max Hastings.
Como jornalista, ele cobriu a Guerra do Vietnã em campo e escreveu mais de 20 livros sobre conflitos militares. Ele lança no Brasil neste mês “Vietnã – Uma Tragédia Épica”, relato de 848 páginas sobre a história do conflito que ficou marcado como a pior derrota militar americana no século 20.
Ao fim da Segunda Guerra, o Vietnã era uma colônia da França. Revolucionários comunistas conseguiram expulsar os franceses e, em 1954, foram criados dois países. Porém, logo surgiu um conflito entre o Vietnã do Norte, apoiado pela União Soviética, e o do Sul, alinhado aos EUA. Os americanos passaram anos fornecendo armas até decidirem entrar no conflito de vez, em 1965. Mesmo com o envio de milhares de soldados e novos tipos de bombas, os Estados Unidos perderam para os guerrilheiros.
Hastings, 75, diz que buscou fazer um retrato mais equilibrado do conflito e lembra que se trata muito mais de uma tragédia vietnamita do que americana. “Quarenta vietnamitas foram mortos para cada baixa americana. Essa abordagem se repete com Afeganistão e Iraque. Você vê artigos sem fim nos jornais sobre quantos americanos foram mortos, mas não vê com frequência quantos afegãos e iraquianos morreram. Uma coisa que historiadores podem fazer é buscar uma abordagem menos nacionalista”, diz.

Os EUA aprenderam algo com os erros na Guerra do Vietnã? Um dos principais erros é tratar como questão militar um problema político. E a política externa americana tem dado errado com frequência nos últimos 50 ou 60 anos porque ela quase sempre tem sido ditada pelas demandas da política doméstica americana. Conversei com um amigo general britânico antes da invasão do Iraque. Era novembro de 2002, ele tinha trabalhado nos planos para a invasão e me disse: “Ir para Bagdá é fácil. Mas eles não têm a mais remota ideia do que fazer depois”. E eles [americanos] agiram exatamente da mesma forma em Cuba, no Vietnã e no Afeganistão: trataram como algo militar um problema que era político.
Visitei o Afeganistão diversas vezes. Qualquer um podia ver a falta de entusiasmo dos afegãos com as tropas ocidentais. Uma vez, entrevistei um ministro afegão. Ele falava um inglês muito americano. Tinha passado a maior parte de sua vida na Califórnia. Como os demais afegãos poderiam se sentir ao serem governados por pessoas assim? No final, a questão sempre é sobre política e como as pessoas locais se sentem. Elas nunca se sentem bem quando estão recebendo ordens de um monte de ianques.

E por que os EUA repetem os mesmos erros por tanto tempo? É muito fácil se encantar com o próprio poder. Quando eu era correspondente no Vietnã para a BBC, visitei uma base aérea bem cedo. Vi as equipes deixando o alojamento e indo até as aeronaves. Havia 50, 60 helicópteros alinhados na pista.
Os pilotos ligaram os motores ao mesmo tempo e partiram juntos, fazendo um barulho enorme. Eu pensava: “Como estas pessoas podem perder?”, embora mesmo em 1971 já fosse óbvio que estavam perdendo. E os americanos também sentiam isso: “Como estes vietnamitas descalços podem confrontar todo o poder dos EUA?”. E houve algo similar no Afeganistão. Só que é muito difícil comparar o poder militar contra inimigos nacionalistas.
Outra questão é que as democracias tendem a não ter muita paciência. Por volta de 1965, o primeiro-ministro do Vietnã do Norte recebeu um jornalista do New York Times, que perguntou a ele quanto tempo ele estava disposto a lutar. Ele disse: “Um ano, cinco anos, dez anos, 20 anos. Estaremos felizes em acomodar vocês”. Eles tinham uma paciência fantástica. O Talibã agiu da mesma forma e seguiu esperando até a paciência Ocidental acabar.
Também me lembro da Guerra das Malvinas, ou Falklands, a última que cobri como correspondente. O que teria acontecido se a guerra tivesse durado seis meses em vez de seis semanas? O povo britânico teria perdido o interesse e começado a se questionar se realmente valia fazer aquele esforço por um pedaço de terra no meio do Atlântico Sul.

Podemos demorar a ter uma nova guerra como a do Vietnã ou do Afeganistão? Toda geração fala que não haverá guerras assim de novo, porque toda geração aprende isso de novo. Se George W. Bush conhecesse alguma coisa sobre história ou sobre o exterior, não teria invadido o Iraque. Não quero soar antiamericano, eu amo ir aos EUA, mas os americanos sabem incrivelmente pouco sobre o resto do mundo. John Kennedy foi o último presidente que conhecia o exterior muito bem. Ele havia passado muito tempo fora quando jovem. E, claro, Barack Obama foi um presidente sensível e sofisticado. Mas a maioria dos presidentes americanos sabe muito pouco sobre o exterior e não se importam muito.
E agora vivemos na era dos drones. Entramos na era do assassinato remoto. Não há dúvidas de que os robôs vão desempenhar funções importantes no campo de batalha. Um dos perigos disso é que os governos, e especialmente o governo americano, que terá mais robôs, podem decidir que este é um tipo de “custo grátis” para fazer guerras. A principal razão para o presidente [Joe] Biden retirar as tropas do Afeganistão é que as pessoas não gostam de ver corpos americanos sendo trazidos para casa. Se você tiver apenas robôs, há um perigo de que os governos se tornem mais dispostos a começar conflitos.
Não acho que vamos ver outra guerra exatamente igual à do Vietnã ou à do Iraque. Mas o presidente [da Rússia Vladimir] Putin pode decidir a qualquer hora começar uma guerra na Ucrânia, por exemplo. Temo que o interesse dos governos em tentar ações militares no exterior ainda esteja presente.

Como o peso da opinião pública americana ajudou a mudar os rumos da guerra do Vietnã? Na época dos impérios europeus, era comum ter guerras coloniais que duravam muitos anos. Mas eram tempos diferentes: as guerras eram lutadas por soldados profissionais, e as pessoas em casa eram menos sensíveis às mortes em batalhas. A sensibilidade com as baixas é sempre um fator muito importante.
Há soldados americanos que dizem que a mídia perdeu a guerra do Vietnã. Não é verdade: os generais e o governo americano a perderam sozinhos. No entanto, se você está vendo pessoas sendo mortas pela televisão, como aconteceu no Vietnã, que foi a primeira guerra transmitida pela TV, é muito difícil para as pessoas em casa se acostumarem com isso.
É importante lembrar que fazia pouco mais de 20 anos da vitória na Segunda Guerra, e muitos americanos não estavam felizes com as baixas, mas estavam confiantes na capacidade dos EUA de vencer. A coisa foi mudando com os protestos dos jovens nos EUA, que começaram a sentir que não queriam morrer em uma guerra que estava sendo perdida. A maioria das operações no Afeganistão e no Iraque foi feita por soldados voluntários [que escolheram se alistar], o que torna a coisa diferente.
Muitos veteranos contam como foi terrível voltar para os EUA e serem tratados como párias, enquanto seus pais retornaram da Segunda Guerra como heróis. Vários deles voltaram do Vietnã com 20, 21 anos de idade e ouviam seus colegas dizendo: “Como você pode ter feito tudo aquilo? Como você pode ter assassinado todas aquelas crianças?”. Eles viam seus conhecidos se afastarem e ficavam muito, muito tristes com isso.
No meio disso, houve também os confrontos pelos direitos civis [para os negros] nos EUA. Outro dia estava revendo um filme que fiz no Vietnã em 1971, com um destacamento americano na floresta. Passei vários dias com eles. E só agora notei que, em todas as cenas, os homens brancos estavam em um canto, e os negros, em outro. Mesmo em campo, os dois grupos não se misturavam. Em algumas unidades havia mais interação, mas em muitas delas as coisas eram assim. Nos últimos anos da guerra, além da sensação de derrota iminente, havia também uma espécie de colapso moral do Exército.

Como vê o avanço atual dos EUA no Pacífico, por meio de parcerias militares? Muitos países da região estão ficando muito tensos em relação à China e estão mais dispostos a se aproximar dos EUA. O Japão, que era fortemente não militarizado, está se tornando muito mais interessado em autodefesa. Há algumas pessoas falando sobre o Japão adquirir armas nucleares, o que é uma questão muito sensível. Mas os japoneses estão muito amedrontados com a China.
FOLHA/montedo.com

Uma resposta

  1. Matéria de conteúdo. O livro é instigante e apesar de retratar um período consolidado, o que é bom do ponto de vista eminentemente histórico, também mostra que não aprendemos nada com o passado.

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