Lupicínio, o novo mártir de 64

Janer Cristaldo

Há dez anos, eu me perguntava quem seriam realmente os vencedores de 64. Os militares brasileiros costumam gabar-se de ter vencido o confronto que culminou com a chamada Revolução de 64. Graças à ação das Forças Armadas, foram derrotados os comunistas e compagnons de route que tentavam transformar o país em uma Cuba meridional. Na época, cabia a pergunta: foram?
Enquanto os militares foram demonizados pelas esquerdas e jogado na horda dos vilões da História, os comunistas que assaltaram o poder foram mimados com indenizações milionárias, que até hoje pesam no bolso do contribuinte. Foi Millôr Fernandes quem melhor resumiu a situação: “A luta armada não deu certo e eles agora pedem indenização? Então, eles não estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento”.
Até aí nada de novo. A este investimento, deu-se o nome de bolsa-guerrilha. Há quem prefira bolsa-ditadura. Ou ainda bolsa-companheiro. Em 2010, Veja denunciava os absurdos patrocinados pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, criada em 2001, que até então havia gasto, em nove anos, nada menos que R$ 2,4 bilhões, distribuídos entre mais de 14 mil brasileiros supostamente prejudicados por perseguições movidas pela ditadura militar brasileira. A quantia, suficiente para alimentar durante um mês 12 milhões de beneficiários do Bolsa-Família, estabeleceu um recorde internacional: nenhum país gastou tanto com reparações.
A revista fazia uma comparação com as indenizações da Alemanha pagas aos judeus em função da Segunda Guerra. O país contemplou Israel com cerca de R$ 9,8 bilhões como reparação simbólica pelo massacre de 6 milhões de judeus. Se fosse repartido em fatias idênticas, cada família atingida pelo Holocausto teria recebido R$ 1633. Já as indenizações pagas no Brasil, se igualmente divididas entre os favorecidos, renderiam R$ 171,4 mil por cabeça. Desequilíbrios provocados pela aplicação de critérios duvidosos, contudo, resultaram em diferenças abissais entre os companheiros de folha de pagamento.
Há quem julgue que estas benesses são obra do PT. Em verdade, a bolsa-ditadura foi aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, em 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Marxista de formação, FHC quis premiar os bravos camaradas que lutavam pela instauração de um regime soviético no país. Enquanto o Exército nacional não tinha verba sequer para alimentar seus soldados, o então presidente FHC assinou uma medida provisória que ampliava a definição e os direitos dos anistiados políticos.
Servidores públicos civis que haviam sido punidos por adesão a greve foram reintegrados a seus cargos. Políticos, civis e militares que já haviam sido readmitidos passaram a pedir indenização financeira à União – hipótese que era vedada na regulamentação da anistia de 2001. As esquerdas e simpatizantes, que viviam protestando contra o arbítrio das medidas provisórias, contra esta não tiveram objeção alguma.
A bolsa-ditadura, em si escandalosa, provocou mais indignação quando foram beneficiados Ziraldo e Jaguar, cartunistas, que ganharam pensões mensais de R$ 4.365,88 e ainda exatos R$ 1.000.253,24 de indenização para cada um. Dona Dilma, a ex-guerrilheira então ministra da Casa Civil recebeu indenizações por três diferentes estados – São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro – que somaram R$ 72 mil. O jornalista e imortal Carlos Heitor Cony ganhou indenização retroativa de R$ 1.417.072,75 e reparação mensal de R$ 19.115,19.
Mas o caso que mais causou mal-estar, pelo menos entre os círculos militares, foi a indenização de R$ 300 mil à viúva e aos filhos do terrorista Carlos Lamarca, pelos dez anos em que estiveram exilados em Cuba. Capitão do Exército, Lamarca desertou da corporação para ingressar na luta armada, na qual foi um dos mais ativos militantes da oposição ao regime militar. Foi ainda o executor de um companheiro de armas, morto indefeso e a coronhadas.
A decisão de indenizar os familiares de Lamarca foi tomada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. De uma penada, um colegiado de civis humilhou as Forças Armadas e reduziu a cacos sua hierarquia. Os generais chiaram. No Rio, disse o general Luiz Cesário da Silveira Filho: “Tudo o que é falta grave que pode ser cometida esse assassino cometeu. E está sendo premiado aí! É lamentável, lamentável! Espero que não vá até o final esse processo. Pode dizer: os generais de Exército, os generais da ativa do Alto Comando do Exército estão indignados. Causou profunda indignação na Força”.
Leônidas Pires Gonçalves , ex-ministro do Exército, declarou: ‘Não me sinto bem tendo como conviva, mesmo morto, um desertor, traidor, ladrão e assassino frio do tenente Mendes, que se ofereceu para defender seus soldados”. Ele se referia a Alberto Mendes Júnior, o tenente que participou do cerco a Lamarca e foi morto a coronhadas, indefeso, em 1970. Tarde piaram os generais. A vendeta via Direito Administrativo das esquerdas não teve mais volta.
Sobrou até indenização de R$ 59,4 mil para o deputado José Dirceu – hoje considerado pelo Ministério Público Federal como chefe da quadrilha do mensalão – por ter sido obrigado a abandonar o País por onze anos, no regime militar. “O Estado brasileiro cassou minha nacionalidade e me baniu do País”, afirmou o petista que, entre outras façanhas, trabalhou para os serviços de inteligência cubanos. A verdade é bastante diferente: José Dirceu era preso político e saiu do país em 1969 com mais 14 pessoas em troca da liberdade do embaixador norte-americano Charles Elbrick, seqüestrado por um grupo ligado ao MR-8. Saiu porque quis e mediante outra ação criminosa. Lula, o patrono dos mensaleiros, percebe cerca de R$ 5 mil por mês, por uma prisão de 31 dias em 79.
Enfim, nada de novo. Estou apenas repassando uma lição de história recente. Questão de refrescar memórias. Em verdade, quero falar de outra coisa. Meio século se passou desde então, e de repente ainda surgem vítimas desconhecidas da ditadura. Domingo, li no portal Terra texto de José Ribamar Bessa Freire, professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO), que nos traz uma notícia insólita: Lupicínio Rodrigues teria sido preso e torturado, durante meses, pela ditadura. Diz o professor:
– A Comissão da Verdade não sabe, mas depois do golpe militar de 1964, o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) foi preso e permaneceu vários meses trancafiado, primeiro no Quartel da PE, no centro de Porto Alegre e, depois, no presídio da Ilha da Pintada, apesar de nunca ter tido qualquer atividade política. Lá, foi humilhado, espancado e torturado, teve a unha arrancada para não tocar mais violão e contraiu uma tuberculose agravada pelo vento frio do rio Jacuí.
Ora, convivi não diariamente, mas noturnamente, com Lupicínio, quando batia o ponto no Bar da Adelaide, na Floriano Peixoto, aquecendo as cordas vocais antes de ir para o Chão de Estrelas. Lupi era um desses homens cuja ausência em seus botecos – por três dias que fosse – causaria alarme em seus amigos. Vivia rodeado de jornalistas, músicos, cantores e gente da noite. Impossível imaginar Lupicínio trancafiado por vários meses sem que toda Porto Alegre soubesse.
Muito menos no quartel da PE ou na ilha da Pintada – o professor certamente quis dizer ilha do Presídio -, por onde passaram boa parte dos comunistas gaúchos, entre eles pelo menos dois de meus colegas de Filosofia. Jamais ouvir falar, por parte de nenhum dos detidos na ilha, qualquer menção a Lupicínio. Seria mais ou menos como se Chico Buarque ou Caetano Veloso tivessem sido torturados durante meses sem que a imprensa nacional soubesse.
Segundo o professor, a confidência lhe teria sido feita por um dos filhos de Lupicínio, Lôndero Gustavo Dávila Rodrigues, também músico, 67 anos, que hoje trabalha como motorista na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
– Pra quem tem dinheiro ou diploma, a prisão política pode até ser uma medalha, tem algo de heróico. Mas para as pessoas humildes, como ele, que não se metia em política, a prisão é sempre uma humilhação, algo que deve ser escondido, esquecido – conta o filho de Lupicínio, a quem conheci recentemente, quando ele, dirigindo o carro da Universidade, veio me buscar para participar de uma banca de mestrado lá em Seropédica.
Preso por quê? Continua o professor:
– Tudo isso por causa de uma ligação pessoal dele com Getúlio Vargas, relação que acabou sendo herdada, posteriormente, por Jango e Brizola. Segundo Lôndero, Lupicínio, que já era um compositor consagrado em 1950, fez um jingle para a volta de Getúlio Vargas, com aquela marchinha de carnaval de Haroldo Lobo, que foi também gravada por Francisco Alves: “Bota o retrato do velho outra vez / Bota no mesmo lugar / o sorriso do velhinho / faz a gente trabalhar”.
Como não é possível encontrar nenhum gesto de oposição por parte de Lupicínio ao regime militar, muito menos nenhuma ideologia de esquerda, foi preciso desenterrar Getúlio Vargas de sua tumba para justificar a suposta prisão do compositor.
Consultei amigos de minha geração, gaúchos que conheceram e conviveram com Lupi. Nenhum tem notícia desta prisão. Impossível conceber a prisão por meses de um homem público – mais que um homem público, um boêmio eternamente presente na noite porto-alegrense – sem que ninguém dela tivesse conhecimento.
Pelo jeito, o Lôndero está de olho em uma bolsa-ditadura. Repasso a história ao conhecimento dos gaúchos e porto-alegrenses que conheceram Lupi de perto.
Baguete/montedo.com

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