O HAITI, NA VISÃO DE UM SOLDADO BRASILEIRO

Um soldado brasileiro no Haitio
O respeito conquistado pelos brasileiros não se deve aos motivos[…]folclóricos. A base de tudo[…] é muito trabalho e respeito pelos haitianos.
Edmilson Lopes Júnior
De Natal (RN)
Ser soldado do Exército Brasileiro, para M., é motivo de orgulho. Falou-me com emoção da sua história. Menino pobre, da periferia de uma grande metrópole brasileira, encontrou na vida militar o caminho para a sua realização pessoal. Não foi fácil o seu engajamento. O primeiro obstáculo era chegar ao Batalhão em que serviu inicialmente. Tinha que acordar antes das cinco da manhã, pegar um trem e rezar para que nenhuma locomotiva quebrasse durante o trajeto. À noite, após um dia de atividades cansativas, freqüentava um curso técnico. Não teve tempo e nem condições de fazer um curso superior. Mas, assegurou-me, ainda vai “entrar na Universidade”.
Há menos de uma década, M. foi transferido para o nordeste. Aqui, participou de diversas ações. Especialmente daquelas de apoio a comunidades pobres no vasto semi-árido. Lembra com carinho das crianças sertanejas rodeando os caminhões. Sempre que as enxergava, nas estradas poeirentas do sertão, lembrava-se dos seus amigos de infância. E sentia-se muito bem fazendo a “sua parte”.
Pensando em aumentar o seu rendimento mensal, com uma remuneração extra em dólares, M. se ofereceu, há três anos, para participar da tropa do Exército enviada para o Haiti. Conseguiu seu objetivo, em 2009. Passou seis meses no país. Ano passado, após o terremoto que devastou Porto Príncipe, novamente retornou para o 2º Batalhão de Infantaria de Força de Paz (BRABATT 2). A experiência haitiana, disse-me M., foi “a faculdade que eu ainda não pude fazer…”. Não conseguiu juntar tantos dólares quanto imaginara, mas acabou descobrindo um país, um povo e redescobrindo o seu próprio país.
M. não apenas consegue se localizar no complexo mapa político haitiano, mas também fala com entusiasmo da história do país. Não lhe passa despercebido o fato de que tenha sido, nesse sofrido país, que os negros, pela primeira vez nas Américas, tenham logrado encaminhar e conseguir a independência de um país. Baby Doc, Tonton Macoutes, René Préval, Jean-Baptiste Aristide, dentre outros, são atores que mobilizou, com segurança e informações corretas, em nossa conversa.
Mas o que M. gosta é de falar do papel do Exército Brasileiro no Haiti. Do apoio à reconstrução do país e dos serviços na área de saúde prestados pela força a que serve com denodo. Para ele, o respeito conquistado pelos brasileiros não se deve aos motivos, geralmente folclóricos (futebol e carnaval, prá variar), aos quais a nossa imprensa atribui o nosso reconhecimento internacional. A base de tudo, diz ele, é “muito trabalho e respeito pelos haitianos”.
M. viajou para os EUA. Fez turismo e compras, como muitos outros soldados brasileiros do BRABATT. Mas as viagens que ficaram gravadas na sua memória foram aquelas em que conseguiu ir além de Porto Príncipe. Em um delas, viajou só, de ônibus, para a República Dominicana. E aí travou contato com as pessoas, em uma condição radicalmente distinta, sem a intermediação da farda. Viu fome, miséria e indignação, mas não apenas isso. E, ao ver além da aparência e daqueles elementos de realidade que fornecem referentes para as imagens dos mídias, M. conseguiu captar, com singular sensibilidade antropológica, aspectos da vida cotidiana haitiana.
Dentre esses aspectos, vale a pena destacar a apreensão de M. a respeito da relação de crianças e adolescentes haitianos com a escola. Para ele, a relação que eles mantêm com a escola só pode ser de amor. M. não consegue entender como, em uma cidade como Porto Príncipe, marcada pela escassez de água, onde as pessoas ainda estão morando em barracos, as crianças vão tão bem vestidas para as salas de aula. “Sabe aquelas fotografias de estudantes brasileiros dos anos 1950? É bem parecido…”. Para além das imagens que apontam mendicância, tão reverberadas nos meios de comunicação, M. encontrou pessoas com dignidade e muito cientes de que precisam fazer alguma coisa por elas mesmas. E que isso envolve educação, o que se expressa, segundo ele, em um grande respeito coletivo para com os professores.
M. tem muito mais para contar. Mas o que é mais importante reter aqui é o seu crescimento, como homem e como soldado, potencializado pela sua participação na missão brasileira no Haiti. Cansamos de ouvir e ler boutades a respeito da missão brasileira no Haiti na imprensa brasileira. “Imperialismo Megalonanico” e “embuste haitiano” foram peças propagandísticas criadas pela Nova Direita para desmoralizar a ação brasileira. Narrativas como a de M. apontam o quanto é pequeno e mesquinho o jogo político barato de rebaixar a luta do Brasil para se firmar como protagonista no cenário internacional. No Haiti, estamos gastando dinheiro, por certo, mas até que ponto esses recursos não são também investimentos?
Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Fale com Edmilson Lopes Júnior: [email protected]
TERRA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo