A coragem dos militares e a necessária revisão do passado recente

 

Um aspecto fundamental para o fortalecimento do regime democrático diz respeito à vigência de relações harmônicas e cordiais entre paisanos e fardados

Antônio Carlos Will Ludwig*
Segundo dicionários, enciclopédias e o próprio senso popular esclarecido, a coragem, predominantemente enxergada como uma qualidade, é compreendida como a capacidade de realizar uma determinada ação malgrado a presença do receio, da intimidação e do medo. Essa compreensão abarca a ideia de que a pessoa corajosa demonstra motivação e confiança frente a situações difíceis e perigosas de serem enfrentadas.

Assim como outras qualidades a coragem já foi objeto de exame no âmbito da Filosofia durante o percurso da história. Parece que Platão e Aristóteles foram os primeiros pensadores a fazer uma reflexão sobre ela. Filósofos posteriores tais como Hobbes, Hume e Nietzsche, dentre vários outros, também apresentaram versões próprias sobre essa relevante virtude.

Frente aos diversos sentidos a ela atribuídos, psicólogos dedicados à pesquisa chegaram a um consenso sobre a necessidade de estabelecer uma conceituação operacional para fazer avançar as investigações sobre a mesma. Após vários estudos, estabeleceram que essa qualidade é composta por quatro elementos: intencionalidade, medo, magnanimidade e risco.

Em decorrência firmaram a noção de que ela diz respeito a uma ação voluntária, realizada após decisão consciente, envolvedora de ameaça avultada, motivada essencialmente para a concretização de um objetivo nobre e portadora do sentimento de temor.

Na atualidade a coragem tem se revelado um atributo muito relevante haja vista a concepção vigente de que a humanidade se encontra hoje inserida em um suposto e questionável novo período da história alcunhado de pós-modernidade.

Nele predomina a instabilidade, a fragmentação, a mutabilidade, o caos, a incerteza, o que torna indefinidos os rumos da história. Esse ambiente exige a presença de um ser humano protagonista, flexível e construtor de múltiplos projetos de vida destinados a garantir sua sobrevivência e prosperidade.

É constatável portanto, que nos dias que correm a coragem tem se revelado um atributo muito requisitado. Na esfera econômica, com os negócios internacionalizados, é requerida a manifestação de decisões ousadas para construir grandes empresas globais. No setor político a ação corajosa contribui muito para o sucesso nas eleições e se mostra imprescindível para a obtenção do êxito dos governantes.

A coragem militar
Em relação à área militar ela se revela um atributo essencial e por demais evidente. Basta lembrar aqui a quantidade de milhões de soldados de diversos países do mundo que enfrentaram a morte e vieram a falecer ou ficaram gravemente feridos em situações de combate aguerrido nas guerras do passado e também da atualidade. E embora venham acontecendo significativas mudanças nas contendas do presente, alteradoras das condutas dos guerreiros, a coragem ainda continua valendo muito.

Os militares brasileiros, já se revelaram corajosos. Na batalha de Itororó, Caxias e seus comandados, em menor número, indiferentes aos muitos perigos circundantes, avançaram sobre a ponte, lutaram arduamente, e colheram uma expressiva vitória.

Na 2ª Guerra Mundial nossos soldados conquistaram Monte Castelo após árdua luta contra as tropas germânicas. Inúmeras ações cívico sociais, realizadas em momentos de calamidade pública e catástrofe climática, envoltas de sérios riscos, bem como diversas operações de garantia da lei e da ordem, também arriscadas, já foram e continuam sendo realizadas pelos servidores fardados.

Por causa de sua elevada importância a coragem é uma virtude muito valorizada no meio castrense, e os processos de socialização e de educação formal, no âmbito dos quartéis, concedem destaque a ela. Ressalte-se que ela integra os códigos de honra dos cursos de formação de oficiais das três Forças. No site do Exército ela aparece na página intitulada Síntese dos Deveres, Valores e da Ética do Exército; no da Aeronáutica emerge na página denominada Nossos Valores e no da Marinha se encontra presente no título referente a Valores da Marinha.

Intromissões na política
Interessa ressaltar que os militares brasileiros, no decorrer da história, exibiram muitos atos de coragem na esfera política. Esta coragem se manifestou através do uso do poder moderador na candidatura de Nilo Peçanha, na posse de Juscelino e na implantação do parlamentarismo no governo de Goulart. Ela emergiu também por meio de golpes tais como o da proclamação da República, o da implantação do Estado Novo, o da renúncia de Vargas e o da eliminação da democracia em 1964.

Recentemente, o partido verde-oliva mobilizou os servidores de uniforme a favor da candidatura do desvairado capitão da reserva; um prestigiado general postou uma manifestação intimidadora direcionada ao Supremo Tribunal Federal; o ministro da Defesa transmitiu ao presidente da Câmara uma mensagem sobre o condicionamento da eleição de 2022 ao emprego do voto impresso; comandantes de muitos quartéis acolheram e protegeram os famigerados patriotas em frente às guaritas e diversos fardados participaram diretamente de uma trama golpista voltada para o impedimento da posse do atual governante do país.

Coragem para rever o passado
É importante notar que essas execráveis e antidemocráticas intromissões na área política, devido aos efeitos deletérios emergentes, levaram os militares a se recolherem taciturnamente no interior dos quartéis. Veja-se que no caso do golpe de 64 uma série de acontecimentos externos, desfavoráveis às Forças Armadas, provocaram o mutismo na caserna. Por sua vez, a tentativa de golpe por parte de alguns servidores de uniforme, em período recente, causadora de sérias consequências na Justiça Civil e Militar, os fizeram permanecer calados no âmbito das instituições bélicas.

Portanto, o que salta aos olhos é o fato de que a tradicional e evidente coragem dos militares foi atingida por um forte movimento de contratura. Com efeito, eles não aproveitaram o extenso período que se seguiu após 1985 para fazer um imprescindível exame crítico dos 20 anos no exercício do poder. No caso da atual tentativa de golpe também não exibiram a atitude crítica de repensar e avaliar os abusivos atos cometidos contra a democracia, inclusive a conduta de omissão face ao ativismo dos colegas insurgentes. O mesmo pode ser dito em relação ao uso do poder moderador nos casos anteriormente citados.

Em suma, nossos militares mostraram no decorrer da história que não possuem a coragem necessária e suficiente para examinar e avaliar as inúmeras ações perpetradas na esfera política. Ressalte-se que é extremamente espantoso e preocupante verificar que no âmbito social ninguém veio a público até o momento cobrar dos servidores de uniforme a exteriorização de tal atitude.

É preciso realçar que essa mudez e esta falta de coragem contribuem muito para potencializar a persistente desavença entre civis e militares a qual precisa ser superada para o bem de todos e do nosso país. É preciso ressaltar também que um dos aspectos fundamentais relativos à manutenção e o fortalecimento do regime democrático em qualquer nação do mundo, particularmente a nossa, diz respeito à vigência de relações harmônicas e cordiais entre paisanos e fardados.

Outrossim, vale lembrar que a grande maioria dos militares do presente não se sintoniza com as ideias antidemocráticas de seus colegas do passado. Nenhum fardado, até o momento, se queixou do cancelamento das ordens do dia emitidas anualmente no mês de março.

O atual comandante do Exército, respaldado pelos comandantes da Marinha e da Aeronáutica, em nome da tropa, já se pronunciou a favor da democracia. Não se observa a manifestação de qualquer servidor de uniforme da ativa favorável aos colegas envolvidos na recente tentativa de golpe de Estado, ao contrário, eles têm se mostrado ao lado da justiça civil.

Por sua vez, a sociedade civil vem demonstrando apoio aos militares contrários ao golpe, particularmente aos que estão colaborando com a justiça paisana. Portanto, a conjuntura social do momento, que tende para para o lado da durabilidade, se revela francamente favorável ao resgate e à vivificação da atitude de coragem voltada para o revisão do passado de forma transparente, em parceria com a comunidade acadêmica, a qual se revelará capaz de ajudar muito a instauração do urgente e imprescindível processo de reconciliação entre os brasileiros de uniforme e os brasileiros que vestem roupas comuns.

* Antônio Carlos Will Ludwig
Professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

Consultor Jurídico

3 respostas

  1. Atualmente no EB falta tudo. De coragem, liderança, moral, ética, respeito, responsabilidade, hierarquia a disciplina. Enfim o exército brasileiro atual não existe, é motivo de chacota e humilhação perante a opinião pública e até mesmo entre seus militares pois o governo Bolsonaro destruiu as bases até então sólidas, da instituição. A política destruiu as FFAA. Os valores básicos de moral, ética, respeito e exemplo, foram jogados na lata do lixo da política brasileira. Caxias, o invicto e gentil, agoniza em seu mausoleu.

    1. “Não precisa ser, Quem parece é” Essa sempre foi uma das frases mais ditas no EB, na verdade nunca fomos muita coisa, mas sempre parecíamos ser.

      Agora boa parte da sociedade parou para olhar para as FAA e descobriram isso, e dessa vez estamos sem apoio.

  2. Governo Bolsonaro enterrou os praças de baixa patente e Lula tá jogando a pá de cal, tudo pra outras categorias e nada pra ralé de coitados, um presidente pior que o Outro, não tem ministro da defesa, não tem comandante, só puxa saco.

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