Rússia e Ucrânia: a qualidade do comando faz a diferença

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Paulo Kramer
Sir Lawrence Freedman é o decano britânico de estudos estratégicos, professor emérito do King’s College (Londres), e autor de obras já consideradas clássicas como The Evolution of Nuclear Strategy (4ª edição, 2019, em coautoria com Jeffrey Michaels) e Strategy: a History (2013). Freedman se prepara agora para lançar Command: the Politics of Military Operations from Korea to Ukraine. Na edição de julho/agosto de 2022 de Foreign Affairs, ele nos brinda com uma ‘degustação’ do novo livro, com foco no conflito russo-ucraniano. O que segue é um ‘apanhado’ dos pontos que considero mais importantes naquele artigo.

I
Nos regimes autocráticos – caso da Rússia de ontem, hoje e talvez sempre –, os governantes, muitas vezes, tomam decisões militares com base em informações incompletas e, não raro, simplesmente falsas, porque a tendência desses déspotas é valorizar a ‘lealdade’ sobre a competência na escolha dos seus generais, cercando-se de yes men temerosos de discordar dos seus superiores ou retransmitir-lhes notícias ‘desagradáveis’ vindas do front. Em grande medida, daí derivam as dificuldades que as forças militares russas vivenciam hoje na Ucrânia, um impasse material e psicologicamente desgastante, enfrentando uma forte e inesperada resistência de um adversário muito menor, porém decidido a criar todas as dificuldades possíveis aos invasores, valendo-se de ampla assistência financeira e militar dos Estados Unidos e seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Como a Rússia se meteu nessa enrascada sangrenta?
Em setembro de 1999, Vladimir Putin se tornou premiê de um física e politicamente enfraquecido presidente Boris Yeltsin. Naquele momento, o exército russo lambia as feridas do seu amor próprio, humilhado em uma longa e desastrosa campanha contra os rebeldes islâmicos da Chechênia (1994/1996). Naquele mesmo setembro, os cidadãos de Moscou e de todo o país foram abalados por explosões em prédios residenciais da capital russa. O governo imediatamente culpou o terrorismo checheno, embora até hoje muita gente desconfie que os ataques foram planejados e executados por ex-colegas de Putin no FSB, substituto da KGB. soviética, a fim de fabricar pretexto para uma nova guerra. Dessa vez, o governo russo desencadeou uma campanha maciça e impiedosa, e a capital da Chechênia, Grozny, acabou conquistada. Na primavera seguinte, Putin venceu com folga a sua primeira eleição presidencial, seu recente sucesso militar sinalizando a determinação do governo a restabelecer a autoridade centralizada do Estado. Nos anos seguintes, o boom mundial das commodities catapultou as exportações russas de petróleo e gás. Essas receitas ajudaram a financiar a modernização do estabelecimento militar. Ao mesmo tempo, as relações com oOcidente começaram a azedar.
Em 2004/2005, a Ucrânia foi varrida pelos ventos pró-ocidentais da chamada Revolução Laranja. Em 2008, durante a conferência de cúpula da Otan em Bucareste, Romênia, o governo de Kiev ventilou a sua aspiração a se unir ao bloco. Em 2013, com o chamado Movimento Maidan, o povo ucraniano derrubou o presidente pró-Rússia que havia voltado atrás na promessa de adesão à União Europeia.. No ano seguinte, o Kremlin retaliou com a anexação da Crimeia. Para justificar esse gesto hostil, Putin alegou que a população local de origem russa estaria sendo perseguida pelo governo central e armou grupos paramilitares de oposição. O Ocidente aceitou aquela agressão com a mesma passividade com que já tinha recebido o massacre da Chechênia e a tomada pelos russos de uma parte do território da Geórgia (2008) como ‘castigo’ pela ousadia cometida pelo governo daquela ex-república soviética do Cáucaso ao anunciar seu desejo de fazer parte da Otan. Moscou continuou armando os rebeldes da região do Donbas, e nem a precária paz estabelecida graças ao acordo de Minsk (Belarus) fez cessar os choques armados, assim como também não cessaram ações russas ‘por procuração’ via ciberataques e operações psicológicas com a finalidade de enfraquecer o governo ucraniano e a infraestrutura econômica do país. Sem alternativa, Kiev foi se aproximando cada vez mais do Ocidente.
Em meados de 2021, o Kremlin divulgou manifesto de Putin declarando que a Ucrânia constituía parte inalienável da pátria-grande russa. Entre o final daquele ano e o começo deste, o governo russo passou a concentrar tropas na fronteira com a Ucrânia. Em Moscou, os comandantes militares asseguraram ao presidente que a invasão seria um ‘passeio’ e que as tropas russas rapidamente tomariam Kiev, decapitariam o governo do presidente Volodymyr Zelensky e o substituiriam por uma junta fantoche. Mas, como registrei há pouco, havia alguns anos que Kiev modernizava as suas forças armadas com treinamento e equipamentos transferidos pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan. Como a hipótese que orientou o exército russo era que a invasão seria curta e rápida, seus comandantes não se prepararam para um conflito mais prolongado tomando os devidos cuidados logísticos; com isso, suprimentos de rações alimentares, combustíveis e armas/munições começaram a escassear. No plano tático-operacional, o erro da invasão foi dispersar unidades de elite entre várias frentes de batalha, dificultando a coordenação e agravando o desafio logístico.
De sua parte, os ucranianos utilizam modernas armas antiaéreas e antitanque, ao mesmo tempo que se beneficiam da proximidade das fontes de suprimento. Já nos primeiros dias da invasão, o exército da Ucrânia impôs sérios danos às colunas de blindados inimigos e às pistas de pouso de que os russos dependem para renovar se reabastecer. Acima de tudo, é o entusiasmo dos soldados ucranianos, devotados à defesa da sua terra, que oferece o mais vivo contraste com o desânimo e a desorientação do inimigo russo. Fez bem o presidente Zelensky ao se recusar a pedir asilo no Ocidente. A legitimidade da sua liderança não só inflama o ânimo dos compatriotas como também acabou convencendo os aliados de que a Ucrânia é, sim, capaz de repelir com sucesso a invasão perpetrada por vizinho muito maior. Em menos de seis meses de luta, 20% das forças terrestres russas foram destruídas, e sua reconstrução se mostra cada vez mais difícil dadas as sanções que sufocam sua base industrial de defesa. Já as pesadas violações de direitos humanos cometidas pelos invasores – tortura, estupros, bombardeio de instalaçoes civis, como hospitais e centros comerciais – só fazem reforçar a determinação ucraniana de resisti e, com ela, a disposição ocidental de apoiá-los mediante amplas doses de assitência financeira, a exemplo do pacote de 40 bilhões de dólares aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos.
Entrementes, o expansionismo agressivo da Rússia deu novo e inédito alento à aliança transatlântica. Suécia e Finlândia, duas potências até outro dia orgulhosas de sua longa tradição de neutralidade, já receberam sinal verde de todos os membros da Otan para engrossar o pacto.O novo “conceito estratégico” da Otan, há pouco divulgado em substituição à versão de 2010, identifica a Federação Russa como “ameaça” imediata e “significativa”, designando a República Popular da China, hoje a maior aliada da Rússia, como um desafio “à segurança e aos valores” ocidentais. (Mais sobre isso ao final deste artigo.) Desde a invasão da Ucrânia, o Pentágono já enviou 10 mil militares americanos à Polônia; 2,5 mil à Romênia; e 2 mil aos três países bálticos. Na Alemanha, os Estados Unidos mantêm o seu maior efetivo (40 mil militares).
Em 25 de março, um mês depois do início daquilo que o governo russo classifica, orwellianamente, como “operação militar especial”, Putin acabou desistindo, ao menos por enquanto, do objetivo inicial de tomar todo o todo o território ucraniano e o redimensionou na perspectiva mais modesta de limitar a ocupação ao sul e ao sudeste do país. Começava a “2ª fase” da campanha: “libertação’ do Donbass, onde se localizam as províncias ‘rebeldes’ de Donetsk e Luhansk. Mesmo assim, nem as conquistas russas das cidades de Mariupol e Lysychansk foram suficientes para dissuadir os ucranianos de prosseguir em sua tática de desgastar a retaguarda inimiga com ataques balísticos de precisão contra bases logísticas e linhas de suprimento.

II
O ímpeto da resistência ucraniana que tanto surpreendeu a maioria dos analistas ocidentais se explica, em grande medida, por dois fatores. Além da capacidade do governo Zelensky para manter elevado o moral das tropas e da população civil, Freedman aponta como variável crucial a flexibilidade da cadeia de comando. Os níveis hierárquicos inferiores sabem tomar decisões adequadas à instável realidade do campo de batalha, sabendo-se apoiados pela confiança dos seus superiores. O contraste com a rigidez hierárquica do comando russo não poderia ser mais dramático.
E Freedman, baseado no acúmulo sistemático de observações históricas que se estendem desde a Guerra da Coreia (1950/1953) até a corrente invasão da Ucrânia pela Rússia, assim resume as quatro condições fundamentais para o sucesso dos comandantes de sucesso:

( 1 ) confiança mútua entre escalões hierárquicos superiores e inferiores;
( 2 ) rápido acesso a equipamentos e suprimentos adequados (no caso da Ucrânia, drones, armas antitanques e antiaéreas que têm provocado um ‘estrago assimétrico’ à máquina de guerra russa);
( 3 ) qualidade da liderança em todos os níveis (contribuição relevante da assistência militar ocidental aos ucranianos); e
( 4 ) compromisso com a missão e compreensão do seu propósito político (em comparação com os soldados ucranianos, os invasores russos chegaram iludidos de que a população local os receberia com vivas e flores, como ‘libertadores’. Repetindo: os ucranianos sempre souberam exatamente por que estão lutando.)

III
Quais as perspectivas do conflito Rússia X Ucrânia, quanto tempo ele irá durar?
Até onde a vista alcança, o atual impasse deve se arrastar pelo menos até o próximo inverno no hemisfério norte, quando poderemos avaliar com clareza qual o tamanho da dependência europeia em face do gás russo. O presidente Jair Bolsonaro tem razão quando observa que as sanções econômicas ocidentais estão criando dificuldades, mas não no grau e com a rapidez com que contavam os adversários da Rússia. Esta projeta para o corrente ano receitas de exportação de petróleo e gás no valor de 267 bilhões de euros, contra os 221 bilhões apurados em 2021, conforme estimativa da Bloomberg,
De outra parte, se o fracasso da invasão vier a precipitar a queda de Putin, não será a primeira vez que erros de cálculo militar terão acarretado mudanças de regime na Rússia. Basta lembrar que a derrota ante ingleses e franceses na Guerra da Crimeia (1853/1856) ensejou um ciclo de reformas sob o czar Alexandre II, inclusive com a libertação dos servos (1861). Em 1905, a vitória do Japão contra a Rússia levou a uma (tímida) liberalização da autocracia imperial. O colapso dos exércitos russos na Primeira Guerra Mundial abriu caminho à Revolução Bolchevique (1917). Por último, mas não em último, a impossibilidade de vitória no Afeganistão (1979/1989) acelerou a implosão da União Soviética.
O conflito na Ucrânia será, em grande medida, decidido longe do campo de batalha. À China de Xi Jinping interessa evitar um fiasco militar russo, pois a Rússia é considerada por Pequim uma preciosa ‘retaguarda logística’ na hipótese, cada vez mais provável, de um acirramento da rivalidade com os Estados Unidos e as democracias avançadas a eles aliadas. Tanto Xi quanto Putin aspiram a construir vastas esferas de influência na Eurásia no quadro de uma nova arquitetura geopolítica à imagem e semelhança de suas visões autocráticas, o que pressupõe uma substancial debilitação da ordem mundial liberal apoiada no colosso norte-americano. Mas, a elite comunista chinesa também receia que o prolongamento/agravamento da guerra na Ucrânia produza um reforço das alianças militares lideradas pelos Estados Unidos na Europa, no Oriente Médio e na região Indo-Pacífico e teme alienar seus parceiros econômicos e comerciais europeus. Assim, para os chineses, em se tratando de China X Ucrânia, se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.
Esse panorama sombrio pode ainda piorar na hipótese de um Putin, inconformado com a perspectiva de derrota humilhante, recorrer à chantagem nuclear, o que, certamente, elevará o risco de uma corrida armamentista Leste/Oeste a um superior e mais perigoso patamar.
Mas, essa é uma outra história, que fica para uma outra vez.
* Cientista político e expert da Fundação da Liberdade Econômica
DIÁRIO DO PODER/montedo.com

4 respostas

  1. Na próxima vez, a análise poderia esclarecer algumas situações citadas e dar ao leitor uma compreensão melhor da história para que se entenda o conflito em seu todo. Essa, totalmente partidária, parte de premissas falsas para obter uma conclusão aparentemente verdadeira. A citação do Sir…não aumenta a credibilidade, nem pelo título nem por ser decano, pode ser outro “Chamberlain”…os conflitos da Rússia pós soviética, foram todos com ex repúblicas, no caso da Geórgia e a autônoma Chechênia, ou seja, não tinham poder militar atômico mas tinham a mesma doutrina militar, o que pressupõe se conhecer o inimigo. Sobre a “democratica” Ucrânia, é o terceiro maior exército europeu, com a mesma doutrina russa. Quem pesquisa no Google pode ver como era o Cabul na década de sessenta, e como ficou depois; como era a Chechênia antes, e como está hoje. Como estava a Rússia antes de Putin, e como está hoje. Não quero me alongar mas a história ( sem viés ideológico) deve fazer parte da análise.

    1. Ai, a putinete conhece tudo de história. Cabul, que você dizer estar melhor graças aos russos, mas que continua uma desgraça, só melhorou um pouco graças aos 20 anos de financiamento americano. A Rússia exterminou um terço da população afegã durante a guerra, na qual foi humilhada pelos guerrilheiros afegãos, e o pouco por eles construído, acabou destroçado pela guerra civil após os russos de la terem se retirado com o rabo no meio das pernas. A Chechênia é objeto de cobiça russa desde as épocas dos czares, basta você se informar sobre a guerra Murid, e na década de 1990 foi nivelada pela artilharia e força aérea da Rússia, a qual, não fosse seu enorme poder de fogo, teria sofrido derrotas em cima de derrotas. O fato da Ucrânia ser uma ex-república soviética não dá aval para a Rússia atacar um país soberano. O Uruguai também pertenceu ao Brasil, logo vamos atacá-lo. O Brasil já pertenceu a Portugal, logo, vamos abrir as pernas para eles nos invadirem. Você fala de história e geopolítica, mas você tem parentes ucranianos, que comeram o pão que o diabo amassou por causa dos russos? Você sabe que, embora parecidos, são povos com várias diferenças culturais? Sobre a Rússia estar melhor com Putin, não sei se você sabe, mas lá a imprensa divulga o que ele quer, tal como a alardeada propaganda de que tinham o melhor exército do mundo, o que tem sido demonstrado de forma bem contrária ao que propagandeavam. Forças armadas sucateadas e incompetentes, incapazes de derrotar um exército bem inferior. Ah, o Alasca era russo e foi vendido a preço de banana (ou vodka) para os americanos. Por que o macho alfa Putin não tenta retomá-lo dos americanos? Por que sabem que não durariam meia hora. É, você parece mesmo muito bem informado pelos grupos de Whatsapp que tem por aí.

  2. Artigo lixo, mentiroso, parcial, tendencioso, que só desinforma e por ai vai. Faltou estomago para continuar lendo. Nem vale a pena tecer algum comentário.

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