O terreno do Galocha!

NOTA PROMISSÓRIA

Causo domingueiro

Ricardo Montedo
Algumas pessoas podem ter ganhos modestos ou exorbitantes, tanto faz. Estarão sempre endividadas, pois são absolutamente incapazes de viver de acordo com o que ganham. É um desvio de conduta que encontramos em todos os níveis sociais e profissionais, sejam os rendimentos mais ou menos polpudos.
Galocha era um desses. Apesar do salário razoável que recebia como primeiro-sargento, vivia atolado em dívidas, pelos gastos estapafúrdios que fazia por compulsão.
Hoje, se diz que isso é doença, mas naqueles tempos de mil novecentos e cinqüenta e poucos o entendimento era bem outro, ainda mais no 144 RC, cujo comandante não admitia que nenhum comandando seu deixasse de honrar suas dívidas,pois isso mancharia o bom conceito que os militares gozavam junto ao comércio de São Pedrito. No 144, todos sabiam: cobrador no quartel, cadeia na certa.
Foi isso o que também pensou Galocha quando o ordenança veio chamá-lo para ir até o gabinete do comandante e, lá chegando, encontrou muito bem acomodado, tomando um cafezinho, “seu ” Cátila Manos.
Explico: Cátila Manos era o agiota mais antigo e implacável da cidade e ganhava muito dinheiro com os incautos que a ele recorriam, pois, naquela época, a atividade era apenas privada, sem a concorrência da agiotagem oficial e escancarada que a todos nós assola hoje em dia.
Foi a esse agiota que Galocha, num momento de desespero, recorreu para obter grande soma em dinheiro. Como um empréstimo nessas circunstâncias constituía crime, o ardiloso Cátila fê-lo assinar uma dúzia de promissórias, referentes ao parcelamento da venda de um terreno, fictício, claro.
Mas, voltemos ao gabinete do comandante. Nem bem Galocha terminou de apresentar-se, foi interpelado pelo coronel:
– Pois, Sargento Galocha, como vê, estou recebendo a visita do seu Cátila, que veio cobrar uma conta que não consegue receber de você.
– De fato, senhor, eu estou com dificuldades para pagar as promissórias. Até agora só consegui pagar duas.
Querendo fazer uma média com o coronel, o agiota arguiu:
– Veja só, comandante, parcelei o terreno em doze vezes, facilitei tudo o que podia, e o sargento me dá calote!
“Agora tu vai ver, velho safado!”, pensou Galocha. E emendou:
– De fato, coronel, o seu Cátila tem toda a razão.Não sou digno da confiança que ele depositou em mim. Mas estou muito envergonhado e tenho uma proposta.
– Que proposta? – quis saber o coronel.
– Bem comandante, como indenização, o seu Cátila fica com o dinheiro das duas promissórias que já paguei, e eu devolvo a ele o terreno.
O coronel sorriu, satisfeito com o que acreditou ser uma grande demonstração de honestidade por parte de seu subordinado.
– Que maravilha. Excelente proposta, não lhe parece, seu Cátila? Meu sargento lhe devolve o terreno, rasgamos as promissórias e o senhor ainda fica no lucro.
– Mas, comandante ….
– Não tem mas, nem meio mas. O assunto está encerrado.
E, pegando as promissórias das mãos do agiota, para desespero do mesmo, rasgou-as todas.
– Pode ir, Sargento Galocha. Não serás punido pela dívida, pois tiveste uma atitude muito digna. Meus parabéns!
– Obrigado, Comandante. – disse o Galocha, fazendo continência e retirando-se rapidamente, antes que começasse a gargalhar, mas ainda a tempo de observar a raiva do velho Cátila que,sem poder dizer um ai, ainda teve que aceitar os cumprimentos do coronel pelo bom coração que tinha demonstrado possuir.

10 respostas

  1. Seu Cátila Manos todo cheio de si, convencido que iria intimidar o ‘equilibrado’ e safo Galocha, “se lascou”.
    Cap Montedo, depois desta saída pela direita do economista Galocha, vai faltar notas promissórias no comércio .
    Excelente.

  2. Me lembro desses agiotas de quartel do início dos anos 90. Na OM não dava muito problema pq o s cmt devia uma grana para um desses e não tinha como punir os devedores sendo ele um deles. Ninguém rasgava promissória mas sempre se chegava a um acordo.

  3. Tem muita gente “trabalhando” de PTTC… pq passou a vida ativa só no churrasco e cervejada… mantendo aparência para “amigos” em Vila Militar… Enfim… ostentando com carro novo e festas para Superiores ver… E hoje após ir para a reserva… vive nas portas de quartéis… mendigando uma humilhante vaga de PTTC pois não tem nem aonde morar… E não pense que é exclusividade de praças não… Conheço coronéis full que vivem essa situação… Aos jovens fica o conselho: família pequena… economia sem ostentação para amigos… e adquirir seu imóvel… carro e um colchão renda para os momentos difíceis que querendo ou não… aparecem… É o mais prudente… Isso independente de posto ou graduação… Fazendo isso… Não é necessário lamber botas no fim de carreira por uma humilhante promoção… ou não menos humilhante… ter que trabalhar como PTTC na reserva…

    1. Excelente.
      Hoje com 51 anos posso dizer que não estou nessa roda. Todos os três filhos formados, 22, 27 e 33 anos. Esposa trabalhando. Esperando completar o tempo e continuar a lecionar se for o caso. Ganho mais trabalhando 3 dias na semana do que meu vencimento de subtenente. Expediente 09:00h às 17:00h. Há uns 5 anos saindo mais cedo na terça sem problema alguns dos chefes, apenas uns pracinhas ficam falando MMM em ocasiões que não é necessário, vocês sabem o quis dizer. Como não me interessou seguir a carreira militar, preferi me preparar para o magistério, deu um tiro certeiro. Espero não precisar pedir esmolas no futuro.
      Boa sorte a todos, mas nunca esqueçam de sua família.

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