Militar da ativa e militar da reserva

O escritor, advogado e professor Joaquim Falcão, membro da Academia Brasileira de Letras - Raquel Cunha - 24.nov.18/Folhapress

Por quem falam, afinal, os militares no governo?

Joaquim Falcão*
Existe o militar da ativa e o militar da reserva. Os militares da ativa e da reserva que trabalham no governo. E os que não trabalham. Existe a elite militar, e a tropa militar. E por aí vamos. Militar é gênero de múltiplas espécies.
Muitos tendem a perceber os militares como um só todo. Com obrigações, valores, missões, benefícios, ideologias, limites únicos. Como bloco uniforme e monolítico.
Não são, não. Diferem, e muito.
Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece. São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.
Já com o militar da reserva que vai para o governo, não. É opção individual. Depende de sua vontade e do convite político. O cargo no governo, seja no primeiro, segundo ou qualquer escalão, necessariamente não corresponde ao treinamento que receberam na ativa. Ao ir para o governo, a renda individual do militar da reserva, em geral, aumenta.
A hierarquia é outra. Às vezes, generais da reserva disputam publicamente posições dentro do governo. Falam, debatem e discordam em público. Mais ainda. Quando militar na ativa comete alguma falta, é julgado na Justiça Militar. De legislação e critérios próprios. Quando em cargo de governo, não. Generais vão depor diante de delegados. E, às vezes, são contraditados.
A evidência destas diferenças de posicionamento entre militar da ativa e militar da reserva, dentro do mesmo governo, está ficando cada vez mais nítida. Para o brasileiro, em geral. Globalmente também.
E, com certeza, gera tensões internas. E externas.
Como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno enviou o seu alerta ao ministro Celso de Mello. Mas não assinou somente como ministro. Sua letra mostra que assinou como general. Qual, afinal, a identidade dos militares em cargos de governo? A que são obrigados? Por quem falam? É o que o Brasil quer saber.
Desde 1988, as Forças Armadas fizeram claro esforço para recuperar a imagem dos militares desgastada pela ditadura. Nacional e internacionalmente. Não somente por causa dos limites constitucionais. Mas por voluntária autolimitação.
Conseguiram. O que tem sido extremamente saudável para o Estado democrático de Direito.
Construíram confiança e legitimidade ao adotarem comportamento democrático diante do poder. Todas as pesquisas de opinião e de confiança nas instituições demonstraram o sucesso dessa política por anos.
As Forças Armadas, as igrejas e a imprensa são instituições em quem os brasileiros mais confiam.
Essa conquista das Forças Armadas é um ativo que não precisa correr nenhum risco. Mas deve estar passando agora por um “stress test”. Devido ao crescente número de militares da reserva assumindo cada vez mais cargos e responsabilidades no governo federal.
​Os militares da reserva no governo não têm responsabilidade direta sobre a imagem da corporação como um todo. Mas interferem. Queiram ou não. A responsabilidade direta pela imagem é dos militares da ativa fora do governo.
Será que essa imagem vai passar imune a este período de extrema radicalização política?
Difícil saber. As tensões e diferenças internas entre militares movem-se como placas tectônicas. Mas é certo que política e governo são um risco às Forças Armadas.
Lembro muito de um episódio simbólico, no final do governo João Baptista Figueiredo. Houvera reunião de ministros da Cultura de vários países em Veneza. Representando o Brasil, foi, então secretário de Cultura, o designer pernambucano Aloísio Magalhães. Que sofreu um acidente vascular cerebral em pleno discurso que fazia.
Faleceu lá mesmo. Uma tragédia.
​Dias depois, alguns membros do Conselho da Fundação Pró-Memória foram a Brasília conversar com o ministro de Educação e Cultura, o general Rubem Ludwig. Que os surpreendeu ao dizer: “Quem deveria ter ido a Veneza era eu. Mas mandei o Aloísio. Não achei que a cultura brasileira deveria se apresentar ao mundo através de um general”.
Ou seja, há limites. Existem valores intangíveis para os militares ocuparem cargos no governo. E se politizarem.
Militar é carreira de Estado. Não de governo.
*Doutor em educação pela Universidade de Genebra, mestre em direito pela Universidade Harvard, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Escola de Direito do Rio da FGV
FOLHA DE SÃO PAULO/montedo.com

13 respostas

  1. Ótima matéria, parabéns Montedo.
    – Talvez seja por isso que existe o Art, 28, Inc. XVIII, e suas alíneas; onde consta algumas restrições aos militares da reserva no tocante ao uso das designações hierárquicas.
    – O que não consigo entender é porque as pessoas vão para a reserva e continuam querendo quase que como uma imposição demonstrar um “status” que na verdade não deve ser utilizado.
    – Tem gente que até para fazer comentários coloca sua designação hierárquica.
    – Algumas pessoas ficam mais de 30 anos nas instituições e quando vão para a reserva continuam querendo ser tratadas como se ainda estivessem em um quartel, porém o mundo é muito mais amplo.
    – Não tenho conhecimento se o Ministério da Defesa já se posicionou sobre eventual violação do sobredito artigo que existe no Estatuto dos Militares, talvez sim, mas se alguém souber pode me esclarecer.

    1. A única manifestação que tenho conhecimento sobre esse contexto foi a edição da Portaria nº 196-EME, de 1º de julho de 2019, que foi publicada no boletim do Exército nº 28, de 12 de julho de 2019.

      Os artigos 7º e 8º da citada portaria regulam a criação de perfis nas mídias sociais, contendo o seguinte texto:

      “Art. 7º A criação de perfis pessoais é de livre arbítrio, sendo o criador do perfil responsável por todas as suas interações digitais, OBSERVANDO-SE FIELMENTE o prescrito no Estatuto dos Militares e no
      Regulamento Disciplinar do Exército, além do ordenamento jurídico vigente.
      Parágrafo único – A FUNÇÃO MILITAR SOMENTE poderá ser associada ao perfil pessoal nas mídias destinadas à publicação de currículos, tais como o Linkedin.
      Art. 8º A criação de PERFIS FUNCIONAIS não é permitida, exceto para os oficiais generais que COMPÕEM o Alto Comando do Exército (ACE).”

      Pelo que consta o Alto Comando do Exército é composto por dezesseis Oficiais Generais da ativa, e nenhum deles ocupa cargo civil fora da Força, são os “quatro estrelas”. Dito isso, também não compreendo o uso da designação hierárquica em perfis da mídia social quando, o Estatuto dos Militares expressamente a proíbe.

  2. Militar é carreira de Estado. Não de governo.

    Disse tudo.

    Questão de tempo para a imagem das FFAA ruir. Levou tempo para limpá-la…

  3. Excelente texto. E mostra como os militares durante o período militar pensavam. Por mais duro que tenha sido o regime, eram nacionalistas e pensavam num Brasil grande. Os generais de agora além de entreguista estão sempre atrás de uma boquinha.

  4. Bem colocada essa postagem, cada um deve saber seu lugar ,o que esta fazendo é de inteira responsabilidade pessoal ,não é só ganhar um dinheiro extra ,mas sim assumir sua nova posição e não a qualquer momento se esconder debaixo do manto da instituição.Foram mais de 30 anos resgatando e reconstruindo a imagem e agora não se pode usá-la de forma irresponsável jogando tudo a perder ,existem ferramentas mais apropriadas para serem usadas .

  5. Excelente artigo. Contudo, lendo os comentários, percebo que há pessoas infiltradas querendo dissuadir a participação de militares no governo. Ser militar é dedicar-se ao país, não importa se na ativa ou na reserva. Obviamente há de ser respeitar o que está previsto no Estatuto dos militares. Apesar das diferenças entre ativos e veteranos, existe um ponto em comum: Defendem o Brasil do comunismo !

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