Os militares e o desvio de função

Fernando Frazão (ABr)

Henrique Lima*
Algo que é muito comum para os servidores públicos civis, mas que é pouco abordado entre os militares, não apenas nas Forças Armadas, mas também entre as Polícias Militares, é o “desvio de função” e os direitos que podem surgir dessa situação.
De modo geral, para cada cargo (civil), posto (militares/oficiais) ou graduação (militares/praças) existe um feixe de atribuições e funções que lhes são inerentes.
Assim, quando um servidor público, civil ou militar, desempenha atividades que são estranhas ao seu cargo, posto ou graduação, passa a ter direito de receber as diferenças remuneratórias.
Isso é tão comum entre os servidores públicos civis que desde 2009 existe súmula do STJ (Superior Tribunal de Justiça) prevendo o seguinte: “reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes.” (Súmula 378, STJ).
No entanto, esse é um tema pouco abordado entre os militares, não porque não aconteça de fato, mas provavelmente por três motivos:

1. Desconhecimento do direito às diferenças dos vencimentos;
2. Receio (infundado) de propor a ação enquanto está na ativa e quando passa à reserva (ou é reformado) o direito já prescreveu; ou
3. Dificuldade em comprovar que efetivamente aconteceu o desvio.

Ressalto que há muito tempo (desde a EC 18/1998) tanto os civis quanto os militares integram o gênero “servidor público”. Por isso, quando a súmula se refere apenas a “servidor”, está incluindo também os militares.
Mas se isso não bastar, ainda cito a seguinte decisão, também do STJ:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. DESVIO DE FUNÇÃO. VENCIMENTOS. DIFERENÇAS. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. I – O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência uniforme no sentido de que o servidor público desviado de sua função, embora não tenha direito ao enquadramento, faz jus aos vencimentos correspondentes à função que efetivamente desempenhou, sob pena de ocorrer o locupletamento ilícito da Administração. Precedentes. II – Agravo interno desprovido. (AgRg no REsp 832.931/CE, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 15/08/2006, DJ 04/09/2006, p. 325)

Esse entendimento está em sintonia com a legislação de regência, pois a Lei 6.880/80, mesmo com as alterações feitas pela Lei 13.954/19, ainda garante esse direito.

Art. 21. Os cargos militares são providos com pessoal que satisfaça aos requisitos de grau hierárquico e de qualificação exigidos para o seu desempenho.
Parágrafo único. O provimento de cargo militar far-se-á por ato de nomeação ou determinação expressa da autoridade competente.
Art. 25. O militar ocupante de cargo da estrutura das Forças Armadas, provido em caráter efetivo ou interino, observado o disposto no parágrafo único do art. 21 desta Lei, faz jus aos direitos correspondentes ao cargo, conforme previsto em lei. (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019)

Basta uma interpretação desses dois dispositivos para notar que o direito às diferenças nos vencimentos decorrentes do desvio de função está expressamente resguardado no Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80).
Um caso que ganhou destaque na mídia foi de um Subtenente de Comunicações do Exército que entre junho de 2010 e dezembro de 2012 exerceu o comando de um Pelotão de Comunicações, sendo que a função era exclusiva de 1º Tenente. Com isso, conseguiu na justiça as diferença entre as duas remunerações.
Importante frisar que o Militar terá direito apenas aos “valores resultantes da diferença entre os vencimentos do cargo ocupado e da função efetivamente exercida, sob pena de locupletamento indevido da Administração” (AgReg REsp 396.704/RS), não lhe sendo possível o enquadramento no posto ou na graduação acerca da qual, de fato e por “determinação expressa da autoridade competente”, desempenhou as funções.
Quanto ao prazo para buscar esse direito, segue a regra geral para essas demandas contra a União, que é de cinco anos. Portanto, importante ficar atento e mesmo que esteja na ativa, buscar o afastamento da injustiça à qual esteve submetido.
Sempre chamo a atenção para o cuidado com os documentos e aqui não é diferente. Servem como prova boletins internos, folhas de alterações, fichas funcionais, atas, portarias e quaisquer outros documentos que evidenciem a “determinação expressa da autoridade competente” (parágrafo único, art. 21, Lei 6.880/80), e tudo isso ainda pode ser confirmado por depoimentos pessoais de testemunhas e informantes.
Espero ter contribuído com informações úteis aos milhares de Militares brasileiros que muitas vezes vivenciam essa situação e acabam sendo prejudicados, enquanto a União se beneficia indevidamente de suas capacidades.
*Advogado
CAMPOGRANDENews/montedo.com

14 respostas

  1. Tudo muito bonito. Mas o regimento interno de cada OM dita os cargos, funções e patentes inerentes. Já vi comandante alterá-lo pra acomodar militar de patente inferior à prevista ao cargo, talvez pra não ter que justificar às instâncias superiores o pagamento dessa diferença.

    1. Muito triste, como se saisse do bolso dele.
      Quem paga é a União. Se o militar exerceu funções além, é medida de justiça remunera-lo.
      Aguardando o dia que tenhamos dignidade com nós mesmos, ao inves de criar embaraços para economizar para o paisano ganhar sob o mesmo fundamento jurídico

      1. Diz isso para um comandante que criou a função de auxiliar para assuntos juridicos e ainda tirou o militar da escala de serviço alegando que ele tem que estar disonivel 24h por dia

        1. A questão é que a maioria dos milicos por serem carreristas se tornam babões de quem está acima dele e basta quem está abaixo vacilar pra ele passar a perna e pontuar com a desgraça do companheiro. Essa é a realidade, falta de caráter e medo.

  2. ihiii tá doido qui eu vô entrá com uma ação dessa ! Depois eu num saio QAO … kkkk ( disse o sub babão e carreirista)

  3. Fica claro que a lei exige que o cargo seja ocupado por militar com qualificação e a sua respectiva habilitação, seja a ocupação interina ou efetivo. Caso não seja ocupado, o responsável deverá responder por improbidade administrativa, valendo também para as promoções militares, não podendo promover militares sem a devida habilitação para o cargo, que resulta no desvio de finalidade dos cursos.

    No artigo 21 está claro que o militar deverá ocupar o cargo se possuir os dois requisitos simultaneamente que são:

    1°) Grau hierárquico: Posto é o grau hierárquico do oficial, que será de 2° Ten a General de Exército e Graduação é o grau hierárquico da praça que será de soldado até subtenente.

    2°) Qualificação:
    A qualificação é constituída pelos atos sequentes de capacitação, com conhecimentos e práticas, e de habilitação, com certificação e diplomação específicas.

    Portanto o grau hierárquico pode ser flexibilizado por normas internas, mas o mesmo não ocorre com a qualificação que deve ser obrigatória, nunca porém o praça pode ocupar cargos ou responder por funções de oficiais, mesmo temporariamente principalmente por não possuir a qualificação com respectiva habilitação para o cargo.

    Qualificação para Oficiais para ocupação de cargos, para os quais são habilitados (progressão na carreira):

    Curso de formação: de 2° Ten a Capitão.

    CHQAO: habilitar o militar ao ingresso no Quadro Auxiliar
    de Oficiais (QAO), de 2° Ten a Capitão.

    Curso de Aperfeiçoamento (EsAO): habilitar oficiais para ocupar cargos e desempenhar funções dos postos de capitão aperfeiçoado e de Oficial Superior, que não exijam a habilitação do Curso de Comando e Estado-Maior.

    ECEME – habilitar militares para ocupação de cargos e desempenho de funções de assessor da alta administração do Exército e habilitar à promoção a oficial-general até o posto de general-de-divisão.

    Qualificação para praças para ocupação de cargos, para os quais são habilitados (progressão na carreira):

    Curso de formação:
    CFSD: soldado
    CFC: Cabo
    CFS de 3° Sgt e 2° Sgt.

    Curso de Aperfeiçoamento (CAS): habilitar o sargento-aluno para os cargos de 2° Sargento Aperfeiçoado, 1° Sargento e de Subtenente.

    LEI Nº 8.429, DE 2 DE JUNHO DE 1992

    Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

    Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

    I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

    Princípio da administração pública

    O princípio da finalidade imprime à autoridade administrativa o dever de praticar o ato administrativo com vistas à realização da finalidade perseguida pela lei. O princípio da legalidade, por outro lado, é o que submete a Administração Pública a agir de acordo com o que a lei, tácita ou expressamente, determina

    Estatuto dos militares

    Art. 21. Os cargos militares são providos com pessoal que satisfaça aos requisitos de grau hierárquico e de qualificação exigidos para o seu desempenho.

    Art. 24. Dentro de uma mesma organização militar, a seqüência de substituições para assumir cargo ou responder por funções, bem como as normas, atribuições e responsabilidades relativas, são as estabelecidas na legislação ou regulamentação específicas, respeitadas a precedência e a qualificação exigidas para o cargo ou o exercício da função.

  4. Como tenente chefiei seção por anos…era função de oficial superior. Sabia desta história mas quem tem coragem, no início de sua carreira, de acionar judicialmente a força em que serve? É direito…pode ser…mas ser transferido para o fim do mundo com a família…ser o pior avaliado da sua turma…não ser promovido…ser perseguido até ser punido…ah! Estas coisas não existem? Sei…minha experiência na caserna mostra o contrário! Vi muito militar de alto padrão, praça ou oficial, ser perseguido…caluniado…punido…transferido para o fim do mundo…E vi muito, oficial e praça, lixo…babão…puxa saco…subserviente…caluniador…se dar muito bem! O mundo não é justo como pensamos…

  5. O Presidente como chefe supremo das forças armadas, deve cumprir a lei no preenchimento de cargos públicos, sejam interinos ou efetivos, sob pena de crime de responsabilidade, as patentes dos oficiais são conferidas pelo Presidente da República, ou seja a promoção dos oficiais devem ser realizadas observando a qualificação para o cargo que irá ocupar com as devidas habilitações, como previsto em lei.

    No caso dos praças as promoções também devem seguir o mesmo procedimento dos oficiais, mas sendo realizado pelos comandantes de cada força.

    No caso dos cargos civis o presidente deve observar as qualificações legais para o provimento dos cargos em que os militares irão ocupar, sob pena do crime de responsabilidade.

    LEI Nº 1.079, DE 10 DE ABRIL DE 1950.
    Do Presidente da República e Ministros de Estado

    Art. 1º São crimes de responsabilidade os que esta lei especifica

    DOS CRIMES CONTRA O EXERCÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS, INDIVIDUAIS E SOCIAIS

    ercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

    5 – servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua;

    8 – provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis;

    9 – violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição;

    CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 18 DE SETEMBRO DE 1946)
    Art 157 – A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão nos seguintes preceitos, além de outros que visem a melhoria da condição dos trabalhadores:
     II – proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil;

    Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

       § 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
       § 14 – É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer.

    DOS CRIMES CONTRA A PROBIDADE NA ADMINISTRAÇÃO

    Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

    3 – não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;

    5 – infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;

  6. “Ressalto que há muito tempo (desde a EC 18/1998) tanto os civis quanto os militares integram o gênero “servidor público”. Parei de ler aqui. O tal advogado está equivocado. Militar é o membro das Forças Armadas (Art 142/CF) e Servidor Público é o servidor titular de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,definidos no Art. 40/CF. Deve ser um daqueles advogados que as associações utilizaram na tramitação do PL, “especialistas” em legislação militar.

  7. Na FAB tem muito cabo com função de encarregado (função de Suboficial). Eu mesmo fui encarregado de vários setores dentro da BAFL. E tenho como provar.

  8. Srs ,observem a mudança na nova lei 13954…… ( SE VACINARAM)
    “ Art. 25. O militar ocupante de cargo da estrutura das Forças Armadas, provido em caráter efetivo ou interino, observado o disposto no parágrafo único do art. 21 desta Lei, faz jus aos direitos correspondentes ao cargo, conforme previsto em lei.

    Parágrafo único. A remuneração do militar será calculada com base no soldo inerente ao seu posto ou à sua graduação, INDEPENDENTEMENTE do cargo que ocupar.” (NOVA REDAÇÃO)

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