Legado incomparável: livro revela aspectos inéditos da vida de Marechal Rondon e sua relação com os índios

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Livro revela aspectos inéditos da vida de Marechal Rondon e sua relação com os índios
Segundo historiadoras, militar foi fundamental para integração do país
Membro de comissão mostra uma câmera para os índios na fronteira com a Colômbia: rituais de tribos eram filmados – Reprodução 
RENATO GRANDELLE
RIO– Foram 40 anos explorando o sertão brasileiro. Neste período, ele percorreu mais de 100 mil quilômetros, o equivalente a 2,5 voltas ao redor da Terra. O tempo na mata e a distância vencida mostram o papel impressionante desempenhado pelo marechal Cândido Rondon, cuja morte completa 60 anos na próxima sexta-feira. Para historiadores que revisitaram a história dele para publicar um livro, o militar foi fundamental para a integração de um país de fronteiras frágeis e para estabelecer contato — e manter a sobrevivência — de tribos indígenas. Além disso, ao levar cientistas em suas viagens, proporcionou o estudo e a descoberta de centenas de novas espécies, iniciando a catalogação do que hoje é conhecida como biodiversidade, uma das maiores riquezas do Brasil.
Abolicionista, responsável pelo contato com centenas de populações indígenas, criador do Serviço de Proteção ao Índio — transformado em Funai em 1967 — e líder de missões em que convergiram ciência, humanismo e políticas públicas, Rondon ganhou admiradores entre intelectuais. Foi indicado duas vezes ao Nobel da paz, em 1953 e 1957. Em 1925, Albert Einstein sugeriu seu nome ao comitê do prêmio. Não ganhou a honraria, mas tem um estado brasileiro para manter viva sua lembrança: o nome de Rondônia foi inspirado no do militar.
— O legado indianista de Rondon foi incomparável. Algumas tribos existem até hoje só por causa de seu trabalho. A ciência também deve muito a ele — avalia Magali Romero Sá, uma das organizadoras do livro “Rondon: inventários do Brasil 1900-1930”, lançado recentemente pela editora Andrea Jakobsson Estúdio.
Outra autora, Lorelai Kury destaca que a República Velha, instalada no final do século XIX, tinha muito interesse nas missões rumo ao oeste e ao norte do país, cujas fronteiras ainda estavam em consolidação. As comissões, como eram chamadas as expedições de reconhecimento, acumulavam objetivos — todos relacionados às potenciais riquezas naturais e ao reforço do poder central sobre as localidades mais isoladas, como as habitadas por nações indígenas.
— Rondon começou em uma missão chefiada em 1890 pelo major Gomes Carneiro, que instalava linhas telegráficas no país — conta Lorelai, que é professora do Programa de História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). — Na verdade, esta não era a principal missão, porque a tecnologia rapidamente tornou-se obsoleta. O efeito esperado era conhecer as tribos indígenas para incorporá-las ao trabalho de ocupação do território. E, simbolicamente, despertar um sentimento de brasilidade.
Dez anos depois, quando assumiu a chefia da primeira de suas seis expedições, Rondon investiu em rituais para criar uma identificação entre os índios e os ideais nacionalistas introduzidos pelos militares.
— Para despertar o patriotismo dos indígenas, o marechal adotou costumes como um horário para o hasteamento da bandeira — revela Lorelai. — Ao mapear uma região, Rondon colocava marcos em pedra e fotografava os indígenas ao lado deles, passando a ideia de que eram os guardiões daquele terreno.
Registro de cerimônias
Theodore Roosevelt, Rondon e membros da equipe posam diante do marco do rio que leva o nome do ex-presidente americano. – Divulgação/Museu do Índio/Funai
Lorelai chama a atenção para a forma adotada pelo chefe das comissões de conquistar a amizade dos nativos.
— Rondon explorava imagens de uma maneira magnífica: fez filmes de qualidade que incentivavam o orgulho nacional e outros que mostravam os costumes daquelas populações — conta.
Magali concorda que o senso midiático de Rondon foi importante para angariar apoio popular a suas expedições.
— Muitas pessoas sequer sabiam que havia tentativas de entrar em contato com os índios, e outros acreditavam que os gastos governamentais para isso eram altos demais. As imagens registradas pelos militares, portanto, foram importantes para divulgar a validade e os resultados dos trabalhos — explica Magali, que também é professora de História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz. — Ao mesmo tempo, Rondon valorizava os rituais indígenas, e assim ganhava a confiança daquelas populações.
Além da apresentação dos valores republicanos, Rondon precisava levar aos seus superiores uma pilha de informações. Os relatórios e correspondências das comissões continham dados sobre diversos aspectos da vida nas tribos, como a estrutura das famílias, alimentação, indumentária, habitação, trabalho, formas de opressão, doenças e práticas de cura.
Para cumprir tantos estudos, o marechal não se restringiu à companhia de militares. Lorelai lembra que, em suas incursões, Rondon convidou profissionais de diversas áreas — entre eles, engenheiros, médicos, cientistas, pintores, cartógrafos e naturalistas.
Conforme os mapas oficiais ganhavam novas informações, as expedições também se dedicavam a batizar marcos geográficos. Um dos homenageados foi o ex-presidente americano Theodore Roosevelt, que acompanhou Rondon em uma comissão científica entre 1913 e 1914. O Rio da Dúvida transformou-se em Rio Roosevelt.
Enquanto os brasileiros abriam estradas e conheciam os indígenas, Roosevelt dedicou-se à caça. O hobby provocou incômodo geral — Rondon caçava apenas para comer, porque acreditava que os animais tinham alma. Muitos militares eram vegetarianos. Um jornal da época publicou uma charge em que um macaco perguntava a outro se sobrariam animais no caminho do ex-presidente.
O GLOBO/montedo.com

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