Uru-Can, a obscura arte marcial criada dentro do Exército brasileiro

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CLÁUDIO GOLDBERG RABIN
photos by FÁBIO TEIXEIRA
Criada na divisão de paraquedistas do Rio de Janeiro, mescla de Karatê, Taekwondo, Kung Fu, Judô e Jiu-Jitsu é praticada por cerca de 500 pessoas pelo país.
O mestre Leonardo Martins Correia está na borda do tatame encarando os alunos de frente. Apesar do calor, ele veste um tipo de quimono com estampa de camuflagem militar e uma calça preta grossa. No peito, na altura do coração, leva um patch da bandeira nacional. No braço direito, tem outro que mostra duas cobras se olhando em posição de ataque. Quase como um instrutor militar, Correia diz, com firmeza: “Prepara”!
Os alunos, cerca de 10 pessoas, respondem com um tipo de urro que eu não tenho capacidade de transformar em uma onomatopeia e colocam os punhos fechados na altura da cintura em frente ao próprio corpo. Os pés ficam em paralelo, mas afastados. Os joelhos estão semi-flexionados. Numa sequência rápida, de menos de cinco segundos, a saudação prossegue:
“Atenção!”, diz Leonardo e ao mesmo tempo leva o punho direito ao encontro da mão esquerda, agora aberta, e junta as pernas como se faz na saudação de continência. Todos repetem o movimento.
Leonardo: “Saudação”!
Alunos: “Brasil”!
Leonardo: “Acima”!
Alunos: “De tudo”!
O ardor nacionalista e as roupas militares vêm do berço. Trata-se de uma arte marcial 100% brasileira, criada pelo militar evangélico negro Paulo César da Silva Lopes dentro dos quartéis cariocas dos anos 70 — o Uru-Can Brasil.
Paulo servia dentro da Brigada de Infantaria Paraquedista, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e acreditava que as artes marciais ensinada na época não eram suficientes para os militares, que precisavam de técnicas para situações reais de combate. Em conjunto com outros três membros do Exército, Paulo fez um pot-pourri com técnicas de Karatê, Taekwondo, Kung Fu, Judô e Jiu-Jitsu, misturando e aperfeiçoando cada uma. Além disso, incorporou treinamentos de defesa pessoal, nuntchaco, facão e fuzil. Sem os constrangimentos da regras das competições, a nova arte tinha uma só missão: a letalidade.
Paulo, criador do Uru-Can. Foto: Arquivo pessoal
Sem uma visão comercial, contudo, o nome demorou quase 10 anos para se firmar. Primeiro foi batizado como Paulo Associação de Lutas Brasileiras e depois como Karatê Brasil. Só em 1983, surgiu o nome definitivo: Uru-Can Brasil — cuja origem é a junção de duas cobras nacionais, a Urutu e a Caninana. O projeto de ensinar a técnica em quartéis por todo Brasil não deu certo, e Paulo passou a levar sua criação para fora das fronteiras militares. Com sua morte em 2003, ela começou a ser transmitida por seus pupilos e hoje é ensinada sobretudo no Rio de Janeiro, em geral nas regiões mais distantes da área central da cidade.
A aula que acompanhamos foi realizada na região da Pedra da Guaratiba, bairro do extremo-oeste do Rio. O lugar é tão longe do núcleo turistóide zona sul, que dá até um tipo idiota de orgulho geográfico só por ter ido até lá. Enfim: a região é como uma cidade pequena e a distância imprime uma diferença no sotaque: erres e chiados são pouco presentes.
A demonstração ocorreu na Val Fitness, uma academia com jeito de clube. Enquanto o professor responsável, Geraldo dos Santos, 42, não fecha uma turma no local, ele convocou os praticantes de outras unidades situadas em Sepetiba, Campo Grande e Santa Cruz para comparecerem. Entre eles estava Leonardo Correia, 39 anos, que além de mestre de Geraldo, aprendeu o Uru-Can com o próprio Paulo: “Comecei a lutar aos oito, mas só conheci o mestre com 16 anos. Aos 18, fui dar aulas com ele nas forças armadas”.
Leonardo Correia aplica golpe em aluno. Foto: Fábio Teixeira
Leonardo comandou a maior parte da aula e das demonstrações. Enquanto os alunos aqueciam treinando um chute giratório de 180°, o professor relembrava alguns princípios da arte em voz alta: “Na rua, jamais caia na imobilização. Imobilização é para torneio. Tem que finalizar o mais rápido possível”. Ao mesmo tempo, Geraldo me explicava as especificidades do Uru-Can: “no solo não tem o rola. Não sou o obrigado a finalizar o meu oponente com regras. Eu jogo meu oponente no chão e finalizo ele da forma que for, não importa como: torcendo, quebrando o pescoço. Tem que apagar o cara de qualquer maneira”. Em seguida, fez questão de enfatizar o caráter pacífico da arte. Por ser mortal, a reação deve ser o último recurso.
“Temos que estar preparados para lutar com mais de um”, diz novamente Leonardo, em voz alta. Em seguida os alunos fazem uma sequência de jab, direto cruzado, seguido de um chute giratório de calcanhar. Alguns têm um chute tão forte que a pessoa que recebe, apesar do anteparo de proteção acolchoado, recua com a força da porrada. “Aqui estamos treinando com tatame, mas no Uru-Can é no chão mesmo. A primeira coisa que o aluno aprende é cair e rolar.”
Arte agrega ensinamentos com faca e fuzil. Foto: Fábio Teixeira
Assim como o karatê possui os katás, que são padrões de movimentos para treinar as habilidades, o Uru-Can possui as fórmulas, consideradas suas sete bases fundamentais. Nenhuma foi demonstrada durante a aula, mas Leonardo me explicou o que era cada uma:
1- Vela: você fica paradinho reto, como uma vela.
2 – Cachorro: você fica como um cachorro sentado, abrindo um pouco as pernas.
3 – Base do cavaleiro montado: é como se a pessoa estivesse montada em um cavalo.
4 – Escorpião: uma perna flexionada e outra esticada, a perna de trás fica como se fosse a cauda do escorpião.
5 – Louva Deus: similar a que tem no Kung Fu
6 – Gato: é como se o felino fosse dar um bote, ele se espreita para poder atacar
7 – Cobra: fica de lado e vira o corpo de frente, como se fosse uma cobra enrolada para dar o bote.
Como o Uru-Can é feito para o mundo real, as aulas também contemplam, até onde é possível, situações de conflitos potenciais. Uma simulação realizada é de uma briga de bar. Sobre o tatame, colocaram duas cadeiras de plástico brancas (não foi possível encontrar uma mesa), uma de frente para outra — numa posição mais conhecida como Marina Abramović no MoMA.
Numa das cadeiras fica o aluno Wesley de Souza, 24 anos. Na outra, está Leonardo. Os dois se encaram, tentam ficar sérios, mas não seguram o riso. O aluno provoca: “Teu pai é canjica!”. É um momento performático, felizmente com mais ação do que os da artista sérvia. Leo se levanta para atacar, afasta a mesa imaginária e dá um soco reto com a direita na altura do rosto do oponente. Wesley então se defende com a direita segurando o punho de Leonardo, puxando-o e ao mesmo tempo socando-o com esquerda. Em seguida, puxa o braço do professor para baixo e lhe dá uma cotovelada nas costas, pouco abaixo do pescoço. Tudo encenação, claro.
Geraldo, de casaco militar, participa da encenação de treta violenta. Foto: Fábio Teixeira
A essa altura Geraldo precisou sair, pois tinha que dar uma aula de luta com dança — um método chamado Uru-Can Fight Dance — que ele mesmo desenvolveu. “Eu mesclei, peguei a arte e coloquei numa forma aeróbica, lúdica. Por exemplo, trabalho os movimentos de flexão de quadril e extensão de joelho, que, na verdade, é um chute frontal”.
Do tatame, Leonardo se preparava para terminar a aula. Antes, ele havia me dito que no momento a luta tinha em torno de 500 praticantes e que seu objetivo era poder divulgar o Uru-Can o máximo possível, cumprindo um desejo de seu mestre Paulo. “Só quero que quando estiverem falando de qualquer arte marcial como o Karatê ou o Krav-Magá, falem do Uru-Can também. Só. Mas infelizmente nossos governantes não dão muito valor para nós. Temos muito o que batalhar e eu batalho com a maior honra”, disse.
Na sua fala final para os alunos, agradeceu a presença da reportagem, dos alunos e de Deus. E encerrou a aula como começou:
Leonardo: “Saudação”!
Alunos: “Brasil”!
Leonardo: “Acima”!
Alunos: “De tudo”!
VICE/montedo.com

26 respostas

  1. Djalmão diz:
    Conheci a técnica, quando servi no Regimento Sampaio, em 1988. Achei muito pirotécnica, mas funcional…não sabia que o Mestre Paulo tinha morrido…era um entusiasta e divulgador incansável de sua criação…ainda bem que existem adeptos que estão, ainda, na luta para não deixar a modalidade morrer…como dizem os racionais: brasileiro não cansas de "pagar pau" para o que é de fora…síndrome de vira latas, como dizia Nelson Rodrigues…mas, enfim…

  2. Essa frase define tudo: "O projeto de ensinar a técnica em quartéis por todo Brasil não deu certo…"

    Porque será? Obvio. Falta de apoio.

    1. Com Todo Respeito,o nome Urucan Brasil é um estilo registrado com CNPJ próprio e Sede própria situada no Rio de janeiro no bairro de Realengo!
      Urucan tem nome e parente registrada em cartório.
      Não tem como ser esquecido!e para aqueles que dizem que o estilo está desatualizado,eu digo que essa pessoa está desinformada vai se informar primeiro e depois poste alguma coisa aqui.

    1. Pode mostrar o registro da criação por favo?

      Pode mostrar o CNPJ que o estilo foi registrado?

      tem a ata da criação?

      Pode dizer aonde foi criado o estilo e em qual lugar?

  3. Com todo respeito ao trabalho do companheiro, mas uma Arte Marcial não se cria e não nasce da noite para o dia. O que existe na verdade é uma mescla de ensinamentos, o que na maioria das vezes é copiado de outras artes marciais. Em Manaus, um cidadão também criou uma arte marcial, o "hankitsu-do", que apesar do nome só existe no Brasil. Uma arte marcial que ninguém sabe de onde veio e ele se julga "mestre", não sei quem o graduou.

  4. Sou aluno de URU CAN BRASIL desde 94 não é só um estilo de arte marcial e uma doutrina onde aprendemos não só a lutar mas também respeitar o próximo URU CAN BRASIL tenho orgulho doa a quem doer.

  5. Enquanto isso, o IPCFEx nos "faz o favor" de erradicar Lutas do TFM, jogando para a instrução militar, na qual nunca será abordada. Em tempo: o Krav maga (trazido para o Brasil pelo mestre Kobi) é hoje uma boa opção para militares que queiram uma preparação para o combate, já que no EB…

  6. Por favor…não deveriam nem ventilar uma coisa tão ridícula. As artes marciais tem suas características técnicas, história, método e objetivos diferentes. Agora vem este MMA tupiniquim se dizendo um método novo…que piada. Se o problema é patriotismo, que o EB pratique capoeira. Mesmo o C-20-50 apesar de ser bem organizado, tecnicamente deixa a desejar…até a tonfa (arma usada no karate e baseada nos golpes desta luta marcial) por desconhecimento dos militares é apresentado como o bastão americano PR-24. Em suma, credibilidade zero!

  7. Sou o Mestre Leonardo Martins Correia 6 grau do estilo Brasileiro de Lutas sistema de Combate e Defesa Pessoal Uru-Can Brasil, ministrei aulas dentro das forças armadas junto com o Mestre criador do estilo Paulo César da Silva Lopes, eu admiro e respeito todas as artes marciais, sendo as milenares ou não, (arte é arte) a meu ver não devemos estacionar no tempo com a idéia de que somos os melhores ou invencíveis, comecei a praticar artes marciais aos oito anos de idade e até hoje aos quarenta anos vejo que preciso aprender, humildade, honra e respeito São primórdios dos verdadeiros adeptos das artes marciais. BRASIL GUERREIROS.

  8. Falar que estilo é ruim, é uma farsa e tudo mais é fácil, correto? Mas a verdade que o brasileiro gosta de de puxar o saco dos estrangeiros, tudo que é brasileiro é ridicularizado, falar é fácil quero ver entrar no tatame com algum praticante de Uru-Can.

  9. Qualquer coisa que foi criado depois do século 18 é copia do que já existia, ou interpretações pessoais de alunos que treinavam artes marciais milenares. Isso inclui o Judo, Hapkido, Aikido, Karate, Taekwondo, Sambo, etc. Muda o nome da arte, a cor do Kimono, ou alguém diz que está criando algo “inovador”, ou “revolucionários”, e la vamos nós vermos as mesmas técnicas de quem treina Hapkido, Jiu Jiusu ou Aikijujitsu aprende em suas aulas dedicadas apenas a defesa pessoal. Hoje é fácil dizer que tem a técnica perfeita contra faca, ou arma de fogo. Não temos mais duelos, não há mais homens andando pelas ruas portando armas brancas. Algum mestre numa demonstrração pega um total desconhecido da plateia e coloca uma peixeira em sua mão e diz “ataque”. Não! Ou tem coragem de fazer o mesmo com um revolver mesmo que seja com bala de festim? Não! Hoje é fácil ser guerreiro e convencer. Todo dia há um mestre novo surgindo. O Youtube tem ajudado muito nisso. Abraços!

  10. Acho muito fácil criticar o que não se conhece.
    Chamam esse método de “tupiniquim” por ser desenvolvido por um brasileiro para brasileiros.
    Um outro ponto em questão é correto, novos métodos ou estilos nascem das artes marciais milenares como aqui citado mas, partindo dessa e da outra citação temos o BJJ, Brazilian Jiu-jitsu, será que esse sistema/método desenvolvido por um brasileiro não foi chamado de tupiniquim, muito pelo contrário, os estrangeiros ao terem o primeiro contato como o novo estilo/método buscaram meios de aprender.
    O problema do brasileiro é o próprio brasileiro.
    Eu, graduado faixa preta em Full Contact por Paulo Roberto Araújo, graduado faixa preta em Karatê Goju-Ryu por José Monteiro Costa Filho, graduado faixa preta em Aikido e Defesa Pessoal por Mário Conceição, atual vice presidente da FEBAM – Federação Baiana de Artes Marciais e Esportes de Combate saúdo os praticantes e seus professores do Uru-Can.
    Oss!!!

    1. Com Todo Respeito,o nome Urucan Brasil é um estilo registrado com CNPJ próprio e Sede própria situada no Rio de janeiro no bairro de Realengo!
      Urucan tem nome e parente registrada em cartório.
      Não tem como ser esquecido!e para aqueles que dizem que o estilo está desatualizado,eu digo que essa pessoa está desinformada vai se informar primeiro e depois poste alguma coisa aqui.

  11. Infelizmente certos comentários acima demonstram que o povo brasileiro não valoriza o produto nacional. Devemos respeitar tanto as Artes importadas quanto o trabalho das Artes criadas no nosso país. Se fomos observar com carinho, todas as Artes a partir da primeira Criação contém elementos técnicos de Artes anteriores. O respeito a Arte do próximo é atributo do verdadeiro Praticante de Artes Marciais.

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