‘Depois do que vi, acho que a Humanidade não deu certo’, diz Luciano Huck sobre Haiti

LUCIANO HUCK*
Ele estava completamente nu. Não tinha mais do que 4 anos. E nu, brincava no meio do esgoto, descalço, na companhia de três ou quatro porcos que faziam o mesmo.
Longe de casa? Não, ele estava a menos de 15 metros da porta. Lá sua mãe cozinhava — não na calçada, porque ali nem havia calçada — mas do lado de fora do casebre, uma sopa na qual nem os porcos pareciam interessados.
O cheiro de tudo aquilo era indescritível, nunca havia inalado nada parecido. Algumas poucas cabras também circulavam por ali. Curiosamente, ratos e urubus não. Como não tinham “donos”, os exemplares dessas aves devoradoras de lixo e os roedores da região já foram comidos pela população.
O menino parecia feliz, sorria. Afinal, ele estava em casa e próximo da sua família.
Escrevo este texto, distante no máximo 5km de onde aquele menino deve estar dormindo agora.
O sono dos justos, em uma casa paupérrima e sem energia elétrica. Nada mais injusto.
Estou sob um mosquiteiro, num confortável alojamento do Brabat 23, o 23º Batalhão do Exército Brasileiro. Onde? Em Porto Príncipe, capital do Haiti.
Vim para ver e tentar entender o que o Brasil está fazendo aqui. E senti orgulho. Confesso que foi a única coisa que me trouxe algum sentimento positivo nesses últimos dias. Mas volto a este assunto mais à frente.
Peço desculpas por talvez carregar um pouco na tinta das próximas linhas, mas estou com o estômago embrulhado. E não é por causa do esgoto, do cheiro, dos porcos, do lixo… nada disso. Depois de tudo o que vi hoje, em Cité Soleil, uma favela com mais de 300 mil habitantes à beira do maravilhoso mar turquesa do Caribe, acho que definitivamente a Humanidade não deu certo. Falhamos.
Não é justo alguém viver naquelas condições. E não estou nos sertões africanos, onde a miséria toma conta de boa parte do território continental. Bem ao contrário, estou a uma hora de voo da maior e mais rica economia do mundo. Não dá tempo nem de ouvir a narração de uma partida de futebol durante a viagem. Os Estados Unidos estão logo ali na esquina.
Em função do meu trabalho, e do prazer que tenho em ouvir e tentar ajudar a encontrar caminhos, já entrei e vivi experiências riquíssimas em favelas encravadas em todas as regiões do Brasil; Norte, Nordeste, Sul, Sudeste… mas nunca vi nada sequer parecido com o que vi e vivi hoje no Haiti.
Se em 2010, depois do terrível terremoto que matou mais de 200 mil haitianos, você fez alguma doação destinada à reconstrução do país caribenho, muito provavelmente seu dinheiro foi roubado. Porque aqui nada foi reconstruído. Começando pela dignidade humana.
O sentimento é de que deveríamos dar um restart no mundo. Começar de novo.
Entender que o mundo mudou. Que a informação que viajava na velocidade de um cavalo há 200 anos hoje trafega de mão em mão, de celular em celular, mais rápido que o pensamento.
Não podemos acreditar que fronteiras geopolíticas justifiquem a miséria absoluta, nem aqui nem logo ali. Que aquele menino cresça naquele ambiente, naquela sujeira, naquela miséria e que não possamos fazer nada por ele. Que mais uma vez a política só cuide de alguns. Ou pra ser mais preciso, do bolso de alguns.
Faltam lideranças com pensamentos de fato modernos, de fato inclusivos, de fato transformadores. Espero que a minha geração possa viver a era da transformação verdadeira, mas neste momento estou descrente, não vejo este caminho nem rascunhado. Nem aqui no Haiti, nem no Brasil, nem nos EUA, nem no mundo. Você acredita que alguém como Donald Trump possa inspirar o mundo nessa direção? Eu não.
Mas como estou indo dormir, preciso arejar os pensamentos com coisas positivas, então volto ao 23º Brabat, o batalhão do Exército brasileiro que participa da Missão de Paz da ONU em território haitiano.
Como disse, foi a única coisa boa que encontrei por aqui. Senti orgulho da nossa bandeira. Tive orgulho de ser brasileiro. Um grupo de 856 cidadãos, brasileiros e brasileiras, com uma média de idade de cerca de 23 anos, voluntários no meio desse caos. Pessoas que deixaram filhos, mulheres, pais e mães, famílias inteiras, para servir a uma pátria que não é a deles. Entendendo que na verdade não há pátria que não seja o planeta e a Humanidade. Para ajudar. Para tentar trazer luz a este apagão social.
Eu vi, com meus próprios olhos, o carinho que a população escancara na presença dos nossos soldados.
Nossos meninos vestidos de soldados frente a frente com aquele menino nu. Todos sorrindo.
Sigo minha missão, empoderando através da TV, aqueles que até então estavam fora dos radares.
No caso do Haiti, os soldados brasileiros, que bravamente aplacam o sofrimento local.
Produzimos mais de 12 horas de um riquíssimo material jornalístico, que em breve irá disseminar nos lares brasileiros uma mensagem positiva e de esperança.
Vou dormir. Espero algum dia acordar em um mundo mais justo. Pode parecer piegas, e é. Mas não é utopia.
*Apresentador de TV
O Globo/montedo.com

16 respostas

  1. Lá também deve ter muitos politicos ladrões, que não estão nem ai para o povo. E devem explora-los.

    Os recursos enviados por outros países, devem ser desviados. Lá também tem muitos ricos.

    Veja o nosso nordeste ! Quanta grana deve ter sido enviado para lá desde o Império ! Um sumidouro de bilhões e bilhões de reais e até hoje o sertanejo tem sede, passa fome, etc …

    Vida que segue ….

  2. Dizer que "a HUMANIDADE não deu certo" e no mesmo texto citar excelentes exemplos de humanismo (quer seja pelo trabalho dos militares, quer seja pelas missões religiosas – as verdadeiras) no mesmo espaço físico, beira o contraditório. Mas vamos lá: tratando-se de L.H., pode-se esperar tudo (tudo pela AUDIÊNCIA).
    Parabéns, L.H.! Agora, pode voltar pra sua casa de praia em Angra, e bom passeio de helicóptero até o destino final.
    P.S: pode parecer crítica, e é. Mas não é demagogia.

    Sgt EB e peacekeeper

  3. Parabéns Luciano Huck…
    Pelo menos um cidadão brasileiro reconhece o excelente trabalho de nosso EB….

    Obrigado…
    2° Sgt 2002

  4. Não precisava ir no Haiti. Poderia ir no Vale do Jequitinhonha, interior do Nordeste, interior da Região Norte, ou quem sabe nas favelas aqui do Rio de Janeiro. O Haiti é aqui, realmente acredito que a raça humana não deu certo, mas para mudarmos a mudança tem que partir primeiro de nós mesmos. Acorda Brasil!!!!!

  5. Finalmente consigo ter alguma esperança nessa geração civil! Faz tempo que não escuto jovens como Luciano, ocupando a mídia com destaque, assumindo, com toda a humildade a tragédia contemporânea que tanto nos agride. É um choque de realidade que vem em boa hora. As gerações que nos sucedem certamente não nos perdoara.

    1. Enganando!!!!!
      Que eu lembre ele recupera os carros e por vezes ainda da a oportunidade da pessoa ter uma renda….

      Isto é enganar????

  6. Parabéns Luciano Huck pela linda reportagem!! Entendo perfeitamente o que você quis dizer na frase "A Humanidade não deu certo"… você fez um desabafo!!! graças a Deus você venceu por conta do seu esforço e do esforço do seus pais,e teve a oportunidade de nascer em um país que funciona, e isso não tornou você uma pessoa insensível as causas humanitárias, tenho certeza que não foi mais uma reportagem para você, pois a maioria das reportagens os apresentadores do programa selecionam, não foi por acaso essa, você lançou uma mensagem de SOS não só para os Brasileiros, mas para o Mundo. Quando você desembarcou no Haiti, acredito ter sentido o que eu senti quando cheguei na missão, fiz algumas perguntas a mim mesmo, porque tanta pobreza, tanta miséria, tanto sofrimento? A mensagem que o lugar transmite, para nós Brasileiros que temos a noção do que é um ESTADO funcionando – digo isso porque muitas crianças Haitianas não sabem como é o Mundo, acreditam que aquilo ali é uma realidade imutável- é o quão importante é um ESTADO que funciona, com INSTITUIÇÕES sólidas, com trabalho e alimento para a população. Existem coisas que as vezes só nos damos conta da sua importância quando falta, aqui no nosso país ainda graças a Deus podemos ir ao Supermercado e comprar gêneros diversos de alimento em um preço razoável, podemos ir a um Hospital Público e ser atendido, pode demorar e faltar as coisas, mas nada se compara a realidade dos Haitianos, podemos trabalhar, pagar os IMPOSTOS e contribuir com o ESTADO . No Haiti, 90% do trabalho é informal, isso dificulta a arrecadação de Impostos pelo Estado, como as Instituições vão conseguir se manter?
    Paralela a mensagem que você deu ao Mundo, pode ainda mostrar o trabalho anônimo de nossas Forças Armadas, dos nossos SOLDADOS, que deixam para trás suas famílias e o nosso amado país para defender interesses Humanitários!! são SOLDADOS que saem do país vibrando em poder ajudar, em poder colocar um "tijolo brasileiro" na reconstrução daquele país, amenizando o sofrimento dos Haitianos. Obrigado por contribuir com o seu trabalho e colocar mais um "tijolo brasileiro" em solo Haitiano. Pode voltar para sua casa com a certeza de um dever cumprido, um dever que todos temos que ter com a Humanidade, de solidariedade e amor ao próximo.
    Apesar de toda tristeza, de toda pobreza, as vezes achamos que não tem jeito, que não tem como mudar, mas se usarmos o coração e tentarmos enxergar com os olhos de Deus, vamos ver que no meio disso tudo, o Haiti tem futuro, e que ele está nas mãos das CRIANÇAS HAITIANAS".

    PEACEKEEAPER 01262/17 CONT BRAENGCOY

  7. No antigo forte nacional no Haiti, o nosso lixo era devorado pelos lixeiros haitianos contratados do Brabat….todos os dias….
    Aquilo nunca saiu da minha cabeça…
    A humanidade parece que falhou realmente…

    Sgt inf 8° contingente

  8. Pura demagogia um apresentador de televisão rico falar algo do Haiti e não ver que no Brasil existe coisas muito parecidas em determinadas regioes.
    Ao invés de ficar filosofando ajude, pois ir fazer reportagem para se engrandecer e utilizar uma farda militar para aparecer na televisão isso quer…

  9. É relevante a missão da Minustah, porém a permanência das tropas, por mais de 10 anos, sem planejamento de quando vai acabar, tem custado ao povo brasileiro a cifra de mais de R$ 2,12 bilhões de reais na missão do Haiti, tendo recebido de volta da ONU 742,72 milhões de reais (333,88 milhões de dólares), sem indicação de criação de um planejamento para deixar o país em condições de se manter sozinho. Será que é justo com a população pagante de imposto? Quem vem cumprindo a missão ou cumpriu achou e acha maravilhosa a experiência, o dindin que ganhou…etc., Foi obra da vaidade do governo Lula e do PT. Mas nós militares que somos eternamente direitista, contra os comunistas, PTralhas, subversivos, vermelhos, blá, blá, blá, aplaudimos esses desvario, e não protestamos a saída das tropas do Haiti, será porque mesmo? PARA REFLETIR!!!

  10. A miséria sempre existiu e sempre existirá. Podemos fazer o que for, mas sempre existirá. Para os governos a pobreza se transforma em lucro, pois proporciona formas de desvios quase imperceptíveis. Não creio que seja demagogia do Luciano Hulk, mas, o que ele viu e reapresentou ao mundo, especialmente ao brasileiros, é realmente pra se refletir. O que aconteceu a eles pode acontecer com agente, pensem, o mundo da muitas voltas, diz o ditado popular, ignoramos um pedinte na porta da lanchonete, ou na porta da sua casa, devemos lembrar que o dia de amanhã não nos pertence. Eu, infelizmente, não tenho condições de ajudar, sou assalariado, e covardemente roubado pelos meus governantes, se eu tivesse condições, ajudaria, de forma significativa.

  11. Nunca vou esquecer de alguns detalhes que presenciei no Haiti em 2007. Detalhes esses que acredito que ninguém gostaria de presenciar como ver mães dando banho nos seus filhos em valões de águas de esgoto e dando de comer a seus filhos em pratos de comida onde não se via o alimento, mas um bando de moscas e insetos que só deixavam o prato quando espantadas. Uma lástima!
    Sentimento de pena, de solidariedade….sei lá. Muitas coisas se misturavam em meus sentimentos.
    Até hoje me lembro com pesar daquele povo e espero que o Senhor Deus possa olhar por eles.
    S Ten – Peacekeeper 6° Contingente

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