Depois de Leônidas, o Exército nunca mais foi o mesmo

Ricardo Montedo
O general Leônidas Pires Gonçalves faleceu na quinta -feira (4) aos 94 anos de idade. Obviamente, sua morte desencadeou a produção de farto material na mídia, em que jornalistas, políticos e comandantes militares relembraram sua trajetória.
É inegável: o general teve um papel fundamental na transição democrática, que foi uma obsessão do general Figueiredo, último presidente militar, e seu mérito nesse contexto é indiscutível.
Não posso me furtar, no entanto, a mostrar aos leitores um outro lado dessa história, no caso, o meu. Com as linhas abaixo, tenho a pretensão de retratar o pensamento da grande maioria daqueles que, como eu, foram militares da ativa durante aquele período. Então, vamos lá:

O ano era 1983. 

No auditório do CPOR de Porto Alegre, um coronel muito competente e educado discorria com entusiasmo sobre a criação do Centro de Pagamento do Exército (CPEx) e a implantação do Sistema de Pagamento (SIAPPES), que estava sendo finalizada.
Foi quando, perante uma plateia de tenentes e sargentos pica-fumos (entre eles, eu), um general de quatro estrelas passou uma carraspana vexatória naquele oficial superior, com mais de três décadas de serviço. O motivo: um erro banal de interpretação. Lembro-me da vergonha que senti – do general, diga-se – ao ver aquele homem de cabelos brancos tomar a posição de sentido e balbuciar algumas vezes: ‘Sim senhor, Excelência…’. A ‘Excelência’ em questão era Leônidas Pires Gonçalves, que dois anos depois foi escolhido ministro do Exército por Tancredo Neves e atuou  como fiador da posse do vice José Sarney, após a morte do presidente eleito. Ali, no auditório do CPOR, estava como Secretário de Economia e Finanças, justamente no período em que foi extinto o pagamento da diferença salarial para o militar que ocupasse cargo de posto ou graduação superior.

Sob Sarney, o Plano Cruzado congelou, além dos preços, os salários do funcionalismo – militares entre eles – já corroídos pela inflação galopante. Data dessa época (setembro de 1986) o famoso artigo de Jair Bolsonaro – então capitão da ativa – publicado na revista Veja, protestando contra os baixos vencimentos dos militares. Bolsonaro foi preso e, na época, sua punição provocou protestos de mulheres de oficiais da ativa – que, ao contrário dos maridos, podiam sair em passeata sem correr o risco de serem presas.

O congelamento durou longos dez meses, enquanto a popularidade do presidente atingia patamares inéditos, suficientes para garantir a esmagadora vitória do PMDB e seus aliados nas eleições gerais de 1986, no maior estelionato eleitoral da história do Brasil. Nem o PT chegou a tanto. Não lembro de qualquer manifestação do temido general sobre esse descalabro.

Passadas as eleições, a estabilidade artificial desmoronou e a inflação retomou sua marcha, que só seria estancada oito anos depois, com o Plano Real. Nós, os comandados do general Leônidas, e nossas famílias, colaboramos compulsoriamente com a armação governamental, sobrevivendo – esse é o termo! – durante esse período com vencimentos muito baixos, como nunca antes – nem depois! – na ‘istória deste paiz’.
A situação não melhorou em nada no ano seguinte, marcado pela invasão da prefeitura de Apucarana pelo capitão Luiz Fernando Walther de Almeida, à frente de uma companhia do 30º Batalhão de Infantaria, em protesto contra os baixos salários e a deficiência no atendimento de saúde aos militares. No mesmo dia (22 de outubro de 1987), o governo anunciou um aumento de 25% para os milicos. O capitão acabou condenado a oito meses de prisão e a inflação ‘comeu’ o reajuste em alguns meses.
Sarney acabou seu mandato com a inflação beirando os 100% ao mês, e um ‘gatilho’ salarial surreal, que fazia com que as pessoas corressem aos supermercados tão logo recebiam seus salários, já que, ao final da primeira quinzena, eles estariam valendo a metade. Eram tempos em que se estocava comida em grande quantidade e em que as armas mais temidas não eram facas na mão de adolescentes, mas sim as maquininhas de remarcar os preços nas mãos dos funcionários dos supermercados.
Depois, vieram Collor, Zélia Cardoso de Mello e o confisco da poupança. O resto da história vocês conhecem.
Voltando ao general, o temor, com certeza, era o sentimento predominante entre a maioria dos militares que cruzaram seu caminho no tempo em que permaneceu à frente da Força Terrestre. Uma visita de inspeção do Ministro tinha o condão de disseminar o pânico, indistintamente, do comandante ao recruta. Sua soberba era conhecida em todo o Exército, assim como sua propensão à arroubos repentinos e seu gosto por humilhar publicamente os subordinados.
A troca de uniformes – necessária, diga-se –  foi implementada com alto custo para os profissionais militares, cujos vencimentos estavam muito defasados. Oficiais e sargentos recém formados se viram obrigados a trocar todo os uniformes adquiridos ao final do curso, sem receber um tostão para isso. Os critérios(?) utilizados eram para lá de confusos: num período de cerca de três anos, o Exército adotou sucessivamente três modelos de japonas de campanha e ao menos dois tipos de fivelas para o cinto NA.
A evasão de oficiais e sargentos nunca foi tão alta como nessa época. Tempos de triste lembrança para os militares do andar de baixo, aqueles do General Leônidas à frente do Exército.
Sobre ele, afirma Sarney:

“Sua participação na transição democrática foi decisiva e a ele devemos grande parte da extinção do militarismo — a agregação do poder militar ao poder político — no Brasil. Ele deu suporte a que transição fosse feita com as Forças Armadas e não contra as Forças Armadas. Pacificou o Exército e assegurou e garantiu o poder civil. Reconduziu os militares aos seus deveres profissionais, defendendo a implantação do regime democrático que floresceu depois de 1985.”

De fato, Leônidas Pires Gonçalves assegurou seu lugar na História. Foi, sim, um dos principais garantidores da incipiente democracia pós-ditadura. Para Sarney, pacificou o Exército, conduzindo-o de volta a seu lugar, os quartéis. Para os militares, arrancou-lhes a ferro e fogo a auto estima, o orgulho profissional, a capacidade de enxergar o mundo além do muro dos batalhões.
Quando passou o cargo, no modernizado Exército não restava mais lugar para líderes, apenas para chefes, dispostos a colocar o carreirismo acima do bem estar dos subordinados. Estava pavimentado o caminho para a política de omissão que se seguiria; estava cunhada a expressão “nossos chefes estão preocupados”; enfim, estavam postas as condições que, anos mais tarde, levariam à anuência vergonhosa da cúpula militar à ‘MP do Mal’.
Depois de Leônidas, o Exército nunca mais foi o mesmo. Para o bem ou para o mal? Como sempre, ensina a História, depende da posição em que estivermos inseridos nela.

23 respostas

  1. Nossa… enfim aprendi o cunho histórico que levou o Exército de hoje a chegar nesta situação vexatória de ter apenas carreiristas que não estão nem aí para as dificuldades da tropa…. pois sou da turma 2002 e sempre vejo os mais antigo a se lamentar das perda e momentos difíceis que a MP do mau trouxe…

    O primeiro comentário deve ser de um destes chefes carreirista…. pois o Exército de hoje é exatamente consequências deste Exmo Gen q Deus o tenha.

    2° Sgt 2002

  2. Para os subordinados do Gen Leonidas, é com a imagem acima descrita que ele entra para história.
    Para os demais oficiais, subtenetes e sargentos, fica a lição, quem apanha nunca esquece…..
    Pessoas com a personalidade de difícil trato, geralmente morrem sozinhas, tristes e amarguradas por não terem deixado amigos verdadeiros….

    Amigão do Sarney…..precisa dizer mais alguma coisa…..

  3. Autoritarismo eis o seu nome. Era 1987 (não lembro precisamente). Formatura dos concludentes da ESAO e o convidado de honra era o Gen Leonidas. Um dos formandos (Cap Bolsonaro), que já havia dado a entrevista a Veja e também punido, foi informado pelo Cmdo escola que não poderia participar da formatura. Os companheiros revoltados o convidaram para que assistisse a formatura. Bolsonaro foi retirado do quartel quase a força e o seu diploma da ESAO foi colocado por baixo da porta de seu PNR. Após isso, diversas vezes,militares mais antigos (Maj,Cel) batiam à porta de seu apartamento para reclamações das mais diversas, desde barulho no Ap até comportamento "inadequado" de seus filhos, até que veio as eleições de 1988, onde Bolsonaro conseguiu ser eleito.
    Esse relato veio da própria boca de Bolsonaro que na epoca reunia-se com os sargentos em barzinhos de Marechal Hermes, onde narrava as perseguições impostas pelo Gen Leonidas.

  4. Bom dia prezado Senhor anônimo (publicação de 07 Jun 15 às 09:).

    Sou militar da ativa.
    Pela afirmação do Senhor "você – O Montedo – está redondamente enganado sobre o Exército de hoje".
    Faço uns questionamentos:
    1) como é para o Senhor o Exército de hoje?
    2) o que podemos fazer para melhorá-lo?
    3) o que o Comando da Instituição poderia fazer para que possamos resgatar "antigos" valores adaptados ao Exército de hoje?
    4) como, na opinião do senhor, deveria ser o Exército do amanhã?
    Como escrevi acima, sou militar da ativa… tenho a plena convicção que precisamos todos (da ativa e da reserva) repensar alguns conceitos e valores para que o Exército sobreviva…
    MÃOS A OBRA!!
    QUE DEUS NOS ILUMINE NESTA TAREFA.

  5. Falando do Exército de hoje ou melhor, a partir de 28 Dez 00, data da entrada em vigor da MP do Mal " A nefasta LRM ", quando a tropa foi vendida e os direitos de alguns adquiridos, preterindo a maioria, os nossos comandantes, não se deram conta do mal que nos fizeram, nunca mais a tropa foi a mesma.

    É preciso que se empenhem para solucionar isso, pois os prejuizos estão ssendo enormes, não existe dedicação mais, o amor a Instituição, o respeito aos Cmt, como era antigamente.

    Solicitem indicadores do endividamento ao CPEX ! Se preocupem.

    Como disse antes, o efeito psicológico negativo na tropa foi devastador. Senhores Cmt, como recuperar esse prejuízo, a auto estima, a dedicação, o respeito ? É preciso agir, pensar no subordinado.

    Na reserva não adianta ficar escrevendo artigos, reclamando do governo.

    Quem viver verá …

  6. PALAVRAS DO TEN CEL WALTER…

    "Me ensinaram nas escolas militares que o militar zela pelas condições de vida digna dos seus comandados, tanto quanto pela manutenção da disciplina e dos deveres castrenses. Eu levei isso ao máximo, talvez além. Eu cometi o crime para chamar a atenção de uma situação injusta e hoje, sem medo de errar, negligente da época", afirma.

  7. Os militares não deveriam NUNCA esquecer …

    TENENTE-CORONEL WALTHER – "Eu cometi o crime em defesa dos meus comandados"

    http://www.jornalmateriaprima.jex.com.br/entrevista/tenente-coronel+walther+-+eu+cometi+o+crime+em+defesa+dos+meus+comandados+

    => Ten Cel Inf, na reserva desde 2003, vinculado a SIP/1 ( RJ )

    => O e-mail dele está lá no site ndo DGP. Os interessados podem fazer contato e agradecer se quiser.

    Isso é história … divulgue !!!!!!

  8. Excelente explanação, não sei qual a percentagem de militares daquela época que ainda estão na ativa, mas acredito serem poucos,visto que quem é praça de 1985 já completou 30 anos de serviço, então sempre é bom alguém lembrar como chegamos até aqui. Como eu sempre digo: a situação dos militares pode piorar sim, e já foi muito pior do que está hoje, e não fazem muitos anos isso.
    S Ten Honório.

  9. Agora entendi muitas coisas as quais nunca consegui enxergar, bela reportagem, parabéns.

    Minha reverência ao Sr Capitão Luiz Fernando Walther de Almeida e ao Cap Bolsonaro, se não fosse pro eles talvez hj estaríamos numa situação bem pior.

    Que o Exército prossiga pacificado, mas não da maneira e do entendimento de uma só pessoa.

  10. Agora caíram escamas dos meus olhos.
    Parabéns pelo texto, a história é pra ser contada e não disfarçada ao bel prazer de alguns. Desde a transição democrática, ainda precisamos de Democracia dentro dos quartéis.

  11. foi esse gen Leonidas que fechou na época vários Colégios Militares, sem mais nem menos decidiu e pronto. mais um que NÃO vai deixar saudades para ninguém.

  12. Os generais dessa época além de serem arrogantes e autoritários ainda são responsáveis pela formação dos borra botas de hoje, que também são arrogantes e autoritários com seus subordinados, mas com o restante são uns lindos e gentis cordeirinhos.

  13. minha contribuição:

    – Vejam, esses generais tinha tudo na mão – os três poderes e a nação – mas que fizeram, deixaram fazer uma constituinte sem a a participação dos militares, no sentido de que fosse garantida uma política de remuneração e aparelhamento das FA atônomas, com isso não precisariamos ficar passando o pires…

    – Faltou visão, Eles subestimarão os petralhas e os demais políticos, pois hoje, aqueles kagam na nossa cabeça.

  14. Entrei no Exército na hora errada- Década de 80.Mas,se tivesse entrado na época da 2º Guerra Mundial, provavelmente seria Herói de Guerra e seria tratado como foram tratados os NOSSOS VERDADEIROS HERÓIS DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA, durante muitos anos : sem-teto; sem assistência médica decente; sem salário digno.

    Essa foi a gratidão e reconhecimento que a sociedade brasileira teve e tem por nós.Mas, não tenham dúvida, os verdadeiros responsáveis por sermos tratados pela ¨elite política e econômica¨ como cidadãos de terceira classe vestem uniformes militares.Olham de cima para baixo como se fôssemos seres humanos militares verdadeiramente inferiores e eles, nobres destinados ao sucesso.Nos encontraremos na frente do verdadeiro GENERAL DOS GENERAIS.Pobre ser humano.

  15. Parabéns pelo texto Montedo, só faltou revelar com a tropa o conhecia, pelo apelido de "Sabonete", criou também o famoso vinco na camiseta de manga curta da farda de passeio, este foi seu grande legado, de resto muita prepotência, punições e grande sufoco para quem serviu na época.

  16. Realmente o EB atravessa uma crise existencial. O Serviço Militar continua obrigatório, recrutando jovens que não tem o mínimo interesse em servir, ao mesmo tempo que possibilita a dispensa de vários outros que seriam voluntários, mas que residem em municípios não tributários. Temos grande quantidade de viaturas novas, mas poucos motoristas. A valorização dos sargentos se resume a carregar o estandarte da OM em formaturas solenes, além de competência para fazer sindicancias. Os oficiais oriundos da AMAN são cada vez mais fracos e descompromissados com a instituição. Muitos buscam outras carreiras no setor público, por serem mais atraentes.
    Eu poderia me estender além, mas faltaria espaço neste comentário.espaço

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