A conquista do topo do Brasil.

Militares vencem obstáculos da selva para trocar a bandeira nacional no ponto mais alto do Brasil

  Sgt Rezende/Agência Força Aérea”Remo, Remo, aqui é Pico da Neblina, na escuta?” São 16h de sábado. Pela primeira vez no dia é possível ver o topo das montanhas no horizonte. Foram sete horas ininterruptas de chuva e forte “aru”, nevoeiro intenso provocado pela inversão térmica colado no topo da vegetação, típico da região amazônica.
A frase é pronunciada dezenas de vezes no rádio UHF na tentativa de fazer contato com o 5° Pelotão Especial de Fronteira (PEF), do Exército Brasileiro, em Maturacá (AM). Os 13 militares do Batalhão de Infantaria de Aeronáutica Especial de Manaus (BINFAE-MN) aguardam o resgate no ponto chamado de Garimpo da Pepita, localizado no pé do Pico da Neblina. O objetivo do contato é avisar a tripulação do helicóptero de que o tempo está aberto para voo no alto do maciço. “Pico da neblina está pronto no ponto de resgate. Aqui o tempo está bom”.
Do outro lado quem responde não é Remo, mas Raul. O suspiro de alívio só ocorre quando o grupo “copia” a mensagem de Remo para Raul “aeronave vai fazer uma tentativa de resgate agora”. Em menos de 10 minutos, ouve-se o som do “buru-buru”, como o helicóptero H-60 Black Hawk é chamado pelos yanomamis. Um atrás do outro, os dez militares que aguardavam abaixados na encosta do terreno entram. Em cerca de 10 minutos de voo, a altitude de dois mil passa para 300 metros. Em linha reta apenas 36 km.
“Se não conseguíssemos realizar o resgate nesta tarde, o grupo entraria em (situação de) sobrevivência”, avalia a comandante da aeronave, Tenente Aviadora Deborah Mendonça Gonçalvez.
Os momentos de tensão fazem parte do desfecho da missão da troca da Bandeira Nacional no Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil com 2.994 metros. Para que no alto do mastro de 4 metros tremule o símbolo maior da Pátria, o grupo de militares da FAB enfrentou quatro dias de caminhada na mata.
A missão é realizada pelo BINFAE-MN desde 2001, a cada dia 19 de novembro, quando é celebrado o Dia da Bandeira. Depois do Parque Nacional do Pico da Neblina ter sido demarcado como terra Yanomami, somente militares realizam expedições. “É uma oportunidade de treinar tudo. Aqui tem montanha, selva, frio, calor”, explica o Coronel de Infantaria Alexandre Okada, Comandante do Batalhão.
Missão árdua
  Sgt Rezende/Agência Força AéreaPara quem vê de fora, a missão é simples. Para quem cumpre a jornada, a tarefa é árdua. Por isso, os integrantes do grupo foram selecionados com muito critério. São profissionais com muito preparo físico e cursos de guerra na selva, operações ribeirinhas, sobrevivência, busca e salvamento, operações especiais e missões de paz. “São poucos os que conseguem participar e cumprir a missão”, explica o Sargento Douglas de Moraes. Pelo segundo ano consecutivo no grupo, ele sente-se a vontade com a mata amazônica. “A selva provê tudo o que precisamos: fogo, água, comida, abrigo. Temos que saber as técnicas para conseguir extrair isso”, afirma, enquanto prepara a mochila que vai acompanhá-lo nos próximos quatro dias.
Tudo está separado por categorias e impermeabilizado em sacos plásticos. O Sargento carrega apenas o essencial para a jornada: comida, kits de higiene e de primeiros socorros, roupas secas para a noite, saco de dormir, fogareiro, uma mini panela, talheres… “Um quilo vira muito mais no caminho”, diz, com a experiência de quem já cumpriu, apenas em 2014, cerca de 170 dias em missão de patrulha de instalações da FAB pela Amazônia, como áreas de construção de pistas ou operações na fronteira. O conforto que ele carrega se reduz a um banco dobrável. Sgt Rezende/Agência Força Aérea
Na cintura exibe a principal ferramenta da selva: o facão. Nas laterais, presos ao cinto, os cantis. A arma 9 mm é apenas para segurança pessoal.
De Manaus até Maturacá são quase 800 km em linha reta. O PEF de Maturacá é uma das cerca de 40 unidades militares do Exército Brasileiro dispostas em locais de fronteira na Amazônia. Ele está próximo a uma das comunidades indígenas yanomami mais antigas do Brasil, a Hiariabu, onde vivem aproximadamente 800 índios. Há outras comunidades da mesma etnia na região, que chegam a reunir 2 mil índios.
É domingo e no horário da visita à aldeia, por volta de 14h, os tuchauas participam do ritual de cura, chamado de Xabori. No centro da comunidade, pintados e carregando adornos amarrados ao corpo, eles concentram-se sob um abrigo feito com palha. Um deles, após utilizar o pó “epena”, faz a dança sob o sol. Em fila, os militares cumprimentam as lideranças. O líder Júlio Goes deseja boa sorte ao grupo e faz recomendações sobre a segurança. “Nesta época chove muito. Redobrem os cuidados”, afirma.
Na segunda-feira inicia a jornada. O grupo segue em uma camionete compacta com tração 4×4 até o igarapé onde estão as voadeiras, tipo de barco com motor de popa muito usado na Amazônia. As mochilas são amarradas nos dois barcos. Nos minutos que antecedem ao embarque, o silêncio impera. Os olhos de todos estão voltados para o rio. O primeiro sinal Spott (sistema de mensagem de localização via satélite) já foi emitido. A missão efetivamente começou.
No primeiro dia, a caminhada é de cerca de 4 horas até a Foz do Tucano. O tempo reduzido não quer dizer que seja tranquilo. A temperatura dentro da selva ultrapassa os 40 graus. Além disso, a “trilha” reserva lama, pedras e galhos soltos, raízes escorregadias, plantas com espinhos. Todo cuidado é pouco.
Soldado-índio
  Sgt Rezende/Agência Força Aérea
Quem indica o trajeto no rio é o Soldado Florêncio Cruz Figueiredo, 21 anos. Ele é o guia da expedição pela segunda vez. Antes de entrar para o Exército, o Soldado Florêncio trabalhava como prático guiando embarcações nos rios e iguarapés da região: ele é um índio da comunidade yanomami Hiariabu e conhece muito bem a região. “Ele indica o percurso como se houvesse placas ali. Para a gente, não dá para diferenciar. É tudo igual”, relata o Coronel Okada.
O primeiro ponto de pernoite é no lugar chamado de Bebedouro Velho. O Sargento José Alberto Bento Souza, de 48 anos, sentiu o peso dos mais 20kg da mochila. Mas a selva une e os colegas ajudaram até ele se recuperar e prosseguir. “O primeiro dia é a fase de adaptação ao ambiente, a gente sente um pouco mais”, explica o Soldado Geovane Cavalcante.
O segundo e o terceiro dia somam subida íngreme e lama. “A gente fazia 50 minutos de caminhada e 10 de descanso”, lembra o Tenente de Infantaria Thiago Souza, de 26 anos. Ele enfrentou o desafio pela segunda vez. No total, o grupo caminhou entre sete e oito horas por dia, com exceção do trecho final, quando foram 15 horas de caminhada. “Não tem como calcular as distâncias por quilômetros. O GPS dá o valor em linha reta. Mas aqui o terreno é cheio de subidas e descidas”, conta.
A selva impõe suas leis. O ideal é chegar ao local de pernoite à tarde, entre 14 e 15h, e aproveitar a luz do sol para o ritual de pernoite: limpar o uniforme, instalar as barracas, conseguir lenha para a fogueira. “O fogo é essencial na mata: aquece, seca a roupa, cozinha alimentos, ilumina e mantém animais afastados”, explica o Sargento Douglas de Moraes. Mesmo cansado, com fome, roupas molhadas, cada um lava o uniforme, o coturno, as meias, e coloca para secar. Depois prepara o jantar, a ração operacional. “O importante na caminhada é beber água o tempo todo. A gente não percebe, mas perde muito líquido. Precisa reidratar”, alerta o Sargento De Moraes.
A alvorada é muito antes de o dia clarear. Com a iluminação das lanternas, cada um prepara o café no caneco de metal e desmonta o acampamento. Mochilas nos ombros. Para não deixar ninguém para trás, o líder anuncia que é momento de enumerar, por antiguidade militar, o efetivo. Por volta das 6h, o grupo se põe em marcha outra vez.
Não é a toa que, no idioma yanomami, Pico da Neblina recebe o nome de “Yaripo”, que quer dizer lugar de vento, chuva e frio. Em apenas dois momentos do dia o morro se mostra: pela manhã e ao final da tarde. No restante do dia fica encoberto pelo forte nevoeiro.
Do Garimpo da Pepita, local para o pernoite antes do último trecho, a dois mil metros de altura, dá para ver o topo do morro. Como o nome diz, a área foi usada para retirada de ouro. Como esta, há outras clareiras abandonadas. A saída em direção ao cume é às 5h20 da manhã. Ainda não tem luz. O caminho é iluminado pelas lanternas. Desta vez, o grupo vai “leve”, sem as duas dezenas de quilos extras da mochila. A comida está nos bolsos: gominha, rapadura, barras de cereais. E o mais importante segue no cantil: repositor de sais minerais.
Sobe morro, desce morro. Lama, água, vegetação, raízes expostas… A vegetação muda conforme a altitude. Uma trilha com pedras parece asfalto depois da lama que cobre até o joelho dos mais altos. A partir da metade do trajeto, o lodo cede lugar às pedras. E vai ser assim até o topo. Num determinado trecho são dez lepars, uma técnica de subida por corda, um atrás do outro.
A vegetação some e ficam apenas as enormes pedras. Para fixar o caminho, o guia confere as pequenas pedras ajeitadas em local visível. Elas serão a certeza da trilha no regresso.
A conquista
  Sgt Rezende/Agência Força Aérea
A chegada ao topo acontece às 12h30. Para cada um é um momento de conquista, superação, vencer os próprios limites, um instante único na vida. O Soldado Márcio de Souza Fernandes, 20 anos, ajoelhou e agradeceu. “Eu fui escolhido entre 400 soldados. É um privilégio estar aqui. Vim lá de Belém para servir em Manaus”, conta.
A antiga bandeira é incinerada. No lugar, é hasteada a nova, com três metros de comprimento. A cerimônia é simples e rápida. “Me senti muito honrado. Essa missão é diferente de todos os cursos que eu já fiz. Ano que vem vou para a reserva”, afirma o Suboficial Armando Leão Teixeira, de 52 anos, responsável por erguer a bandeira até o topo do mastro.
O grupo fica apenas 30 minutos no cume. A neblina intensa não permite ver a dimensão do lugar. A chuva apressa tudo. Ela torna o trajeto de volta mais perigoso do que já seria. As cachoeiras não tardam a surgir ao longo do morro. Enquanto isso, os militares tentam apertar o passo. Descer é mais fácil, em teoria. Com apoio das mãos, o corpo vai escorregando nas pedras. O primeiro lepard de descida é o mais difícil. Um a um, eles vencem cinco metros de uma pedra lisa com a corda molhada. A caminhada não pode parar. Além da preocupação com o horário, tem o frio. Todos estão encharcados. A área é aberta e o vento forte.
Nesta época, escurece por volta de 18h30. Mas para chegar até o acampamento será necessário mais uma hora e meia andando na completa escuridão.
Na chegada, o Sargento Luiz Henrique Barbosa, 23 anos, recebe o grupo oferecendo uma caneca de chocolate quente. Para quem andou 15 horas, está cansado, com fome e frio, esta é a sensação do paraíso. “Eu já passei por isso. Sei como é difícil chegar neste estado”, explica.
Estão todos exaustos, mas satisfeitos, por terem cumprido a missão e terem retornado em segurança. “São poucos os que chegaram aqui”, avalia o Sargento Bento.
Local de descobertas científicas
  Sgt Rezende/Agência Força AéreaAos 63 anos, o cientista Victor Py-Daniel não se importa com a água gelada acima da altura dos joelhos. No córrego que permeia a Bacia do Gelo, a 2 mil metros de altitude, no pé do Pico da Neblina, ele busca na água corrente, com uma peneira, larvas, pupas e ovos do mosquito conhecido na região Norte do Brasil como pium. “A gente precisa conhecer o que tem aqui”, analisa.
A água cor de café vem dos ácidos liberados pelas raízes das árvores. É a concentração destes ácidos que dá nome ao principal rio da região: o Negro. Justamente o rio que por 30 anos guiou as pesquisas do cientista dedicado a estudar as doenças endêmicas da região amazônica, especialmente no Alto Rio Negro, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
Agora, como professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB), o entomologista médico e forense busca estudar as espécies que vivem na área. Como o Everest ou o continente Antártico, a região do Pico da Neblina é singular. “Tem características físicas, biológicas, ambientais e geológicas únicas. O mundo precisa saber sobre as coisas que estão aqui. Os elementos são únicos e as relações entre esses elementos são únicas também. As substâncias, os comportamentos, as características endêmicas”, explica.
O pium é o causador das enfermidades oncocercose e mansonelose, endêmicas da região amazônica. Ao picar os humanos, o mosquito introduz um verme que se desenvolve no sistema linfático ou sanguíneo e aloja-se sob a pele ou nas veias do tubo digestivo. Os vermes reproduzem-se e morrem obstruindo a passagem sanguínea. A cegueira ocorre quando ele se instala no globo ocular. Os sintomas são parecidos com o da malária, mal estar generalizado, coceira, febre.
Há 24 anos, Py-daniel em companhia de outros 34 pesquisadores brasileiros, realizou uma expedição para este mesmo ponto. O grupo ficou 20 dias acampado no local para coletar amostras e estudar a região. À época, ele encontrou parte de um novo inseto na região. A tentativa é encontrar novamente a espécie para concluir a descrição. “Eu não vou tentar, eu vou conseguir”, afirma. (R. A.)
(Imagens: Sargento Rezende/FAB)
FAB/montedo.com

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