O Brasil não sabe nada sobre seus soldados suicidas

…o Exército só sabe se alguém tem um potencial suicida quando ele mesmo se apresenta.


João Paulo Charleaux @jpcharleaux
O segundo suicídio de militar brasileiro no Haiti passou sorrateiro pelo radar. Primeiro, foi o ex-comandante da missão, o general Urano Bacellar, encontrado morto com um disparo a cabeça, no quarto do hotel onde vivia em Porto Príncipe, em janeiro de 2006. Agora, no dia 1 de novembro, o soldado Geraldo Barbosa Luiz, de apenas 21 anos, disparou um fuzil FAL 7,62 mm contra si mesmo, quando estava dentro do quartel.
O enterro de Bacellar (foto cortesia ONU).
O Exército Brasileiro pode não ter uma ideia precisa do que vem acontecendo com a mente e a alma de seus homens no Haiti. É uma pena. A Minustah é a primeira grande mobilização operacional brasileira desde a Segunda Guerra Mundial, em 1945. Renderia um ótimo estudo de caso.
Tendências suicidas poderiam ser detectadas mais facilmente se o Exército soubesse quantos de seus homens voltam da missão apresentando Transtorno do Stress Pós-Traumático, Transtorno Depressivo, Transtorno Fóbico, T”ranstorno de Ansiedade, Transtorno de Pânico, Agorafobia e Esquizofrenia. Em abril, questionei o Exército Brasileiro sobre a prevalência desses males entre os “desmobilizados” que voltam para casa depois de cumprir a missão.
O Exército só consegue detectar isso por meio de “autorrelatos padronizados (inventários) em que o respondente indica os sintomas que tem experimentado”, é o que a instituição militar me respondeu depois de eu ter usado a Lei de Acesso à Informação. “Nem todos os militares respondem aos itens dos instrumentos psicológicos. O CEP (Centro de Estudos de Pessoal) não conseguiu, pois, alcançar todo o universo do contingente”. Especificamente sobre Transtorno de Pânico, não há dados.
Em termos leigos, significa que o Exército só sabe se alguém tem um potencial suicida quando ele mesmo se apresenta. A psicóloga Elaine Alves acha isso “um absurdo”. Ela trabalha no Ceped-USP (Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres), da Universidade de São Paulo. Elaine considera a ferramenta dos “autorrelatos” limitada demais para detectar esses transtornos num ambiente tão particular quanto uma missão militar.
Quem convive de perto com militares no Haiti sabe como a missão é difícil. Recentemente, ouvi longos relatos de um oficial — que se pronunciou unicamente sob a restrita condição de anonimato — de que viu três colegas severamente transtornados quando esteve no Haiti. O primeiro deles se mostrou sobrecarregado com a responsabilidade que tinha, de manter computadores e redes elétricas funcionando. Com uma frequência incomum, ele se ausentava de onde estivesse — fosse uma refeição ou reunião — para verificar repetidas vezes se as tomadas estavam ligadas e a corrente funcionando. Em pouco tempo, o técnico teve de ser afastado do trabalho. No segundo caso, um militar tentou suicídio, foi contido e enviado antecipadamente para o Brasil. Por último, um terceiro colega se tornou obsessivo com o risco de contágio por doenças a ponto de não conseguir mais interagir socialmente nem trabalhar, o que também o obrigou a voltar ao Brasil.
“O afastamento da família é o mais difícil. Tenho de cuidar de minha saúde mental porque vou sair na rua e sei que a população vai me xingar, me jogar pedra, cuspir na minha cara. Eu tenho o poder sobre a vida e a morte nas mãos. Isso choca. Choca muito. Saí de lá [do Haiti] e mandei minha família para Miami. Fomos fazer uma viagem para a Disney. Não dá. Choca”, diz coronel José Mateus Teixeira Ribeiro, ex-membro da Minustah, lotado hoje no Gabinete do Comando do Exército em Brasília.
Os dados que o Exército maneja oficialmente são irreais, e se apoiam somente em “auto-relatos”. Dos 17 contingentes brasileiros engajados na missão nos últimos 10 anos, apenas quatro militares tiveram transtorno de ansiedade e outros três tiveram depressão, mas, como a própria instituição diz, nunca se saberá da incidência no universo total de militares envolvidos na missão até que os casos aconteçam.
VICE/montedo.com

14 respostas

  1. Sempre atento às tendências e visando manter a boa imagem da instituição e o bem estar da tropa, determinei a publicação no BI de hoje da proibição de qualquer tipo de atentado contra a própria vida.

  2. O despreparo profissional, a falta de atuações em campanha são motivos do amadorismo nas FFAA. Os soldados novos não sabem nem onde estão, qual são os motivos conjunturais e estruturais, além de históricos da presença deles neste país caribenho, pensam que voltarão com muito dinheiro, a maioria das vezes dinheiro que nunca tiveram, se desiludem quando caem na realidade. Os mais antigos, com função de comando, passaram anos e anos brincando de vermelho contra azul e não tem experiência para tratar de certos aspectos da vida aquartelada e fora do país, a enorme maioria passou quase 30 anos sem disparar um tiro real, qualquer coisa os afeta e causa transtornos. Profissionalismo de alguns militares não falta mas, como um todo, o amadorismo impera. E quando for para defender a Pátria???

  3. E desde quando o exército sabe alguma coisa referente ao fator humano? Cada um cuida do seu interesse e do material que pode lhe causar problema. O resto não é da conta de ninguém. É um comando ao estilo zeca pagodinho. Deixa a vida me levar.

  4. Em nenhuma desorganização militar que estive, vi o comandante conversando com cb/sd, incentivando-os a prestar concurso para EsPCEx nem EsSA, sequer cursar ensino superior, quiçá técnico. O que impera no comando é um autismo moral em que interessa somente passar 2 aninhos sem alteração de forma a não prejudicar a promoção a general. Os oficiais estão preocupados com cursos e transferência. Os Sten e Sgt estão preocupados com os empréstimos, as babações ou as transferências (sul, RJ ou SP) e os cb/sd estão totalmente à deriva. Capelania militar rima com vilania. Dia desses me apareceu um capelão católico que como padre era um excelente militar. Falou sobre hierarquia e disciplina da forma que nenhum militar de carreira teria competência para dissertar. Entretanto quando chegou no quesito religião, a homilia mais parecia leitura alusiva ao dia do EB com direito à vida espartana e tudo mais. Jesus que é bom, nada. Há problemas em todos os níveis, entretanto os mais suscetíveis ao extremo de retirar a própria vida são os jovens. A depender do comando, alguma providência só será tomada no momento em que o número de suicídios começar a comprometer a escala de serviço da guarda. É um descaso total com o maior patrimônio da Força, o soldado.

  5. Matéria mau intencionada. O caboco quando quer se matar não fica avisando a outro. Aí nas OM vira e mexe tem milico se matando. Outra coisa, incorporem quantos psicólogos forem necessários e mandem para o Haiti. Jamais conseguirão penetrar na cabeça de quem deseja se matar. Ao comentarista que fala de amadorismo, sirva na Engenharia prá conhecer os nobres sargentos do extinto QE, verdadeiros profissionais que, infelizmente a nossa Instituição perderá daqui alguns anos. Quanto à população xingar, cuspir, etc, etc, tudo conversa, os haitianos, na sua grande maioria apoiam a presença das tropas brasileiras, pois se identificam bastante com elas. Existem sim, aqueles que se incomodam, mas são minoria. Nossa relação com a população tem sim, MUITO PROFISSIONALISMO e não amadorismo como comentou o cidadão que, com certeza deve levar a vida dele como um cantor de pagode.

  6. Certas passagens do texto não procedem, como por exemplo, o relato de hostilidade haitiana para com os militares brasileiros. Os haitianos são, na sua maioria, a favor das tropas brasileiras. Aqueles que agridem ou fazem algo do tipo é porque devem algo, estão errados. Quem já fez patrulha em Waffe Jeremie a noite dentro de um Urutu sabe disto.
    Tenho quase 20 anos de Exército, na minha experiência profissional vi diversos casos de suicídios em quartéis, a maioria motivados por problemas familiares e dinheiro. Um coisa em comum em todas estes casos que acompanhei foi o fator surpresa. Quem quis se matar o fez sem mostrar grandes indícios.
    A missão no Haiti é muito intensa, pois tudo lá é intenso, todas as responsabilidades e afazeres são maiores que qualquer outra OM no Brasil.
    A matéria citou um militar responsável por computadores com bastante afazeres, sim, concordo, mas TODOS OS DEMAIS TAMBÉM TEM O QUE FAZER: aquele que cuida dos geradores, por exemplo, é tão importante quanto este, pois se a luz acabar lá por mais de cinco minutos, muita gente vai sentir os efeitos. Se alguém baixar por doença na Base, o ônus será compensado por outros.
    Ao contrário do que falam, há pessoas muito preocupadas com o bem estar da tropa. O mais difícil no Haiti, prezados leitores, É COBRAR O ÓBVIO, pois o óbvio não está sendo cobrado na rotina dos quartéis.
    A saudade da família, namorada, os problemas que ficam no Brasil são potencializadores de toda esta dinâmica, mas de fato nossos militares enfrentam tudo isto com méritos, em sua maioria.
    Uma coisa é certa: não há um acompanhamento regulado ao término da missão, nesta hora que realmente os problemas acontecem, o chamado stress pós traumático. Isto aconteceu na minha OM de diversas formas com diversos militares, das mais simples até as formas patológicas.
    Em síntese, nosso soldado é bom nesta atividade, mas antes de ser SOLDADO é um homem, um ser humano com qualidades e defeitos, possibilidades e limitações. O acompanha,ento é primordial nestes casos, por mais de seis meses pós missão.
    TUDO PELA PAZ!

  7. Gostaria de esclarecer meu depoimento citado na matéria. Não afirmei que em todos os momentos e nas diversas missões que nosso Batalhão cumpriu éramos agredidos de alguma forma, mas sim "que deveríamos estar preparados para qualquer tipo de provocação". Acredito que o jornalista quer explorar o estresse, isto sim, pelo confinamento e afastamento dos nossos entes queridos. Na quase totalidade das nossas missões fomos bem recebidos pela maioria da população, mas existe parte da população contrária a presença de qualquer militar da ONU, algo perfeitamente normal em qualquer país que possui tropas estrangeiras no seu território. José Mateus Teixeira Ribeiro

  8. Quando cheguei da missão após o terremoto, desci com meus subordinados no Rio de Janeiro e nem a passagem para São Paulo o Major de Brasília que estava nos recebendo quis providenciar…. Sempre que a tropa chega há um descaso muito grande por pessoas incompetentes escondidas em seu posto.

  9. Prezado Rodrigo Villani, vc disse tudo que faltou no meu comentário de 01:54h. Forte abraço no companheiro que veste a mesma camiseta. TUDO PELA PAZ!!!

  10. ACREDITO QUE NÃO SÓ FALTA UM ACOMPANHAMENTO MEDICO PARA ESTES CORAJOSOS HOMENS, MAS TAMBÉM UM CUIDADO ESPIRITUAL, PARA QUE A PRESENÇA DE DEUS SE FAÇA NÃO SÓ PRESENTE, MAS SE MANISFESTE DE FORMA REAL NA VIDA DESTE HOMENS QUE ESTÃO LONGE DE CASA, DA FAMÍLIA E POR MUITAS VEZES, NÃO TEM DO BEM MAIS PRECIOSO,QUE É A PRESENÇA DO ESPIRITO SANTO DE DEUS EM CADA UM DELES.
    QUE O SENHOR POSSA CONFORTAR CADA FAMÍLIA E EU ORO PARA QUE O AMOR DE DEUS E PAZ ESTEJA COM CADA UM DE VOCÊS.

  11. A incompetência dos comandantes com certeza tem muito haver com o fator psicológico de uma missão desse nível. No período em que estive no Haiti pude perceber claramente como oficiais e sargentos prezam pelo seu conceito, achando que a melhor forma de fazer isso é não levando os problemas para cima, para que as providências cabíveis fossem tomadas. Eu e meus companheiros muito sofremos com relação a isso, o fato de estar afastado da família, cansado das patrulhas, de ser humilhado nas ruas muitas vezes, de cumprir ordens ridículas sem nenhuma finalidade, ter que ver diariamente o sofrimento daquele povo, e ainda não ser atendido nas sua solicitações, causou um desconforto tão grande que levou a um verdadeiro caos. Se o militar não ser forte psicologicamente, não tiver o apoio da família e dos amigos, além do apoio dos seus comandantes, uma missão que já é difícil torna-se para alguns impossível!

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