O civil deve ser excluído da jurisdição penal militar ou a Justiça Militar da União necessita de reformulação para julgá-lo?

Luciano Moreira Gorrilas
Na Justiça Militar da União, aflige parte da comunidade jurídica o fato de o civil ser processado e julgado por um Conselho de Justiça composto, em sua maioria, por juízes militares leigos.
Tornou-se recorrente, em alguns julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, a inserção de registros acerca de uma tendência moderna que vem ocorrendo nas Justiças Militares de outros países referente à exclusão do civil da jurisdição penal militar.
Vale, nesse sentido, trazer à colação trecho contido no habeas corpus nº 109.544, verbis :
A regulação do tema pertinente à Justiça Militar no plano do Direito comparado.
· Tendência que registra, modernamente, em sistema normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, quarta revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g..
Assim, é oportuno destacar dois relevantes pontos que, ao que tudo indica, passaram ao largo da percepção dos ínclitos julgadores da Segunda Turma da Suprema Corte Brasileira:
1. No direito comparado, em regra, as Justiças Militares não fazem parte do sistema judiciário de suas nações.
2. No sistema normativo estrangeiro, os cargos de Juiz, Promotor de Justiça e Defensor, nos Tribunais Militares, são exercidos exclusivamente por militares.
Enfatize-se, nesse aspecto, que no Brasil a Justiça Militar da União (JMU) foi sedimentada com uma estrutura completamente diversa daquelas praticadas no cenário jurídico internacional, uma vez que, desde a CF 1937 até a presente (CF 1988), encontra-se inserida entre os órgãos judiciários do ordenamento pátrio:
Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:
I. o Supremo Tribunal Federal;
I-A o Conselho Nacional de Justiça;
II. o Superior Tribunal de Justiça;
III. os Tribunais Regionais e Federais e Juízes Federais;
IV. os Tribunais e Juízes do Trabalho;
V.os Tribunais e Juízes Eleitorais;
VI.os Tribunais e Juízes Militares;
VII.os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
Da mesma forma, o Ministério Público Militar integra o Ministério Público da União (MPU):
Art. 128. O Ministério Público abrange:
I-o Ministério Público da União, que compreende:
a) o Ministério Público Federal;
b) o Ministério Público do Trabalho;
c) o Ministério Público Militar;
d) o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios;
Aliás, em termos de jurisdição penal militar, nosso país é marcado por peculiaridades que em muito diferem de outras civilizações jurídicas. Com efeito, temos no Brasil duas Justiças Militares (estadual e federal), sendo civis, em ambas, os operadores de Direito representantes do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Relativamente à Justiça Militar da União, há concurso público, com participação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), de provas e títulos, específico para o ingresso nas carreiras da magistratura e do Ministério Público Militar para os cargos respectivos de Juiz-Auditor e Promotor de Justiça Militar.
É bem verdade que a mencionada JMU funciona em modelo de escabinato, em que, a partir do recebimento da denúncia pelo Juiz-Auditor, portanto, durante o processo, todos os atos processuais ocorrem perante ou a um Conselho Permanente de Justiça (cuja competência é julgar praças das Forças Armadas e civis) ou a um Conselho Especial de Justiça (competente para julgar oficiais até o posto de Coronel ou equivalente posto na Marinha). Os aludidos Conselhos de Justiça são compostos por um Juiz-Auditor e quatro oficiais da ativa das Forças Armadas.
Talvez este seja o nó górdio referente à organização da Justiça Militar da União que tanto aflige parte da comunidade jurídica nacional e internacional, ou seja, o fato de o civil ser processado e julgado por um Conselho de Justiça composto, em sua maioria, por juízes militares leigos.
Não é nossa pretensão, nessa exposição, tecer críticas à anunciada tendência de países que excluíram ou tencionam excluir o civil de suas jurisdições penais militares, mas apenas pontuar que as experiências jurídicas vividas por aquelas nações em nada se comparam com a brasileira. Vale relembrar que a Justiça Militar da União, no seu momento mais notório historicamente, quando julgava os crimes contra a Lei de Segurança Nacional praticados, basicamente, por civis, introduziu no sistema judiciário brasileiro, de forma inédita, alguns institutos jurídicos inovadores para aquela época, merecendo destaque o que concede liminar em habeas corpus (medida altamente liberal para o momento político que o país atravessava, o qual foi adotado, posteriormente, por outros tribunais).
Tal fato não passou despercebido pela arguta visão de Fernando da Costa Tourinho Filho que, em seu livro Prática de Processo Penal, registrou:

Uma das mais belas criações da nossa jurisprudência foi a da liminar em pedido de habeas corpus, assegurando de maneira mais eficaz o direito de liberdade. Malgrado as críticas que, injustamente, se fazem à Justiça Militar, cumpre registrar que tal providência liminar em pedido de habeas corpus foi concedida, pela primeira vez entre nós, pela Justiça Militar. Concedeu-a o Almirante José Espínola, ilustre figura que perolou no STM (cf. RTJ.33.590)

Assim, com a devida venia, entendo ser temerário importar tendências ou modelos de outros países para o Brasil sem um prévio e aprofundado estudo no qual não poderão ser olvidados os aspectos referentes às vicissitudes que caracterizam o Poder Judiciário Brasileiro, entre os quais os excessivos números de processos que tramitam na justiça comum. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, o Poder Judiciário recebeu, no primeiro semestre de 2011, 8,2 milhões de processos (este dado, por si só, demonstra que não é razoável a extinção ou redução de competência de qualquer órgão do Poder Judiciário Brasileiro).
Desse modo, penso que a solução para essa vexata quaestio está na reestruturação da Justiça Militar da União, de modo a adequá-la para processar e julgar crimes militares cometidos por civis, num contexto moderno e adaptado ao cenário jurídico nacional e internacional contemporâneo.
Nesse sentido, a Justiça Militar Estadual, embora não tendo competência para julgar civis, avançou quando, por intermédio da Emenda Constitucional 45, de 2004, os Juízes de Direito do juízo militar passaram a, monocraticamente, processar e julgar crimes militares praticados contra civis (crimes impropriamente militares).
Destarte, a inovação exitosa no âmbito da Justiça Militar Estadual trazida pela aludida EC sugere mudanças na Justiça Militar da União, vale dizer, nos casos em que envolvam civis, seja no polo ativo ou passivo de um crime militar, os processos e julgamentos ficariam a cargo do Juiz-Auditor. Os Conselhos de Justiça passariam a julgar somente os crimes propriamente militares, é dizer, aqueles que, na sua essência, só podem ser praticados por militares da ativa (deserções, abandono de posto, violência contra superior e outros).
Por outro lado, poder-se-ia criar uma turma de segunda instância da JMU (Superior Tribunal Militar), integrada apenas por ministros civis, para julgamentos de recursos provenientes de ações penais militares em que figurassem o civil.
Afora a aludida mudança de competência, deveriam ainda ser aplicadas aos civis as penas alternativas previstas na legislação penal comum, conforme muito bem ressaltou Ailton José da Silva, em seu artigo Penas Restritivas de Direito e o Código Penal Militar.
O que não nos parece razoável e nem se afigura como solução para o sistema penal jurídico brasileiro, no qual o judiciário se encontra excessivamente assoberbado, devido à tramitação de infindáveis processos, é levar para a esfera de competência da Justiça Federal mais este encargo: o de julgar crimes militares praticados por civis.
Noutra vereda, a prevalecer tal modelo para o Brasil, a apuração dos ditos crimes impropriamente militares praticados por civil ficaria a cargo da Polícia Federal, polícia judiciária originária em âmbito federal, igualmente assoberbada em seus afazeres, cujo efetivo não lhe permite sequer policiar as fronteiras brasileiras.
Demais disso, exsurgem algumas inquietantes indagações que nos parecem intransponíveis no caso de o referido modelo preconizado internacionalmente vir a ser aplicado no Brasil. Como ficariam os bens jurídicos tutelados pelo Código Penal Militar (CPM) que afetam as Instituições Militares e a operacionalidade das Forças Armada e podem ser perfeitamente violados pelo civil? Seria razoável levar para justiça comum traficantes que invadem organizações militares para subtraírem armamentos militares? E quanto aos receptadores desses armamentos? Como proceder com os civis que, em co-autoria com os militares, em processos licitatórios fraudulentos, provocam consideráveis prejuízos ao erário público militar? E a respeito do crime de insubmissão que só pode ser praticado por civil? E os desertores, sem estabilidade, que são excluídos a partir da consumação do crime de deserção, passando à condição de civil? Poderiam ser presos na qualidade de civil quando fossem capturados? E acerca dos diversos crimes contra a Segurança Externa do país, contra a Disciplina Militar, contra o Serviço Militar, a Saúde e a Administração Militar, alguns deles abaixo descritos, os quais podem ser praticados por civis:
Art. 146. Penetrar, sem licença, ou introduzir-se clandestinamente ou sob falso pretexto, em lugar sujeito à administração militar, ou centro industrial a serviço de construção ou fabricação sob fiscalização militar, para colher informação destinada a país estrangeiro ou agente seu:
Pena – reclusão, de três a oito anos.
Art. 155. Incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar:
Pena – reclusão, de dois a quatro anos.
Art. 184. Criar ou simular incapacidade física, que inabilite o convocado para o serviço militar:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Art. 295. Fornecer às Forças Armadas substâncias alimentícias ou medicinal corrompida, adulterada ou falsificada, tornada, assim, nociva à saúde.
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Art. 296. Fornecer às Forças Armadas substâncias alimentícias ou medicinal alterada, reduzindo, assim, o seu valor nutritivo ou terapêutico.
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Art. 302. Penetrar em fortaleza, quartel, estabelecimento militar, navio, aeronave, hangar, ou em outro lugar sujeito à administração militar, por onde seja defeso ou não haja passagem regular, ou iludindo a vigilância da sentinela ou de vigia.
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Ainda nessa esteira de argumentação, qual seria a solução para os militares da reserva e reformados, os quais a legislação penal militar equipara ao civil (Art. 9º. Os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou civil, contra as instituições militares…). Estariam eles fora da jurisdição penal militar ao praticarem crime militar?
Assim, a despeito de recomendações de algumas entidades internacionais direcionadas para exclusão do civil da jurisdição penal militar, verifica-se que tais orientações não levaram em conta as características de per si de cada nação, principalmente o Brasil. Tomou-se como paradigma, a meu ver, de forma equivocada, países onde a composição dos tribunais militares é constituída exclusivamente por militares, com suas legislações penais voltadas apenas para o militar como agente de crime.
Dessa forma, mister se faz assinalar que o Código Penal Militar entrou em vigor em 1969 (o CP, em 1941) e elenca, no mencionado inciso III do artigo 9º, as circunstâncias em que o comportamento do civil se subsome em crime militar. Ademais, conforme verifica-se abaixo, o CPM estabelece tratamento diferenciado ao civil, até mesmo no tocante à aplicação da pena.

Art. 62. O civil cumpre a pena aplicada pela Justiça Militar, em estabelecimento prisional civil, ficando ele sujeito ao regime conforme a legislação penal comum, de cujos benefícios e concessões, também, poderá gozar.

Ressalte-se que a legislação penal e processual penal militar já mereceu considerações elogiosas por parte de renomados juristas do porte de Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar (Direito Penal Brasileiro – I, Editora Revan, RJ, Primeiro volume, 2ª edição, 2003, pág. 310), consoante muito bem anotou meu preclaro e dileto professor, José Carlos Couto de Carvalho, em seu trabalho: Peculiaridades e Algumas Questões Controvertidas do Processo Penal Militar.
Pelas razões expostas, considero que a Justiça Militar da União deve continuar a julgar civis que cometam crimes militares, devendo, contudo, sofrer reformulações em sua competência a fim de atender aos anseios de modernas tendências internacionais. De fato, não faz sentido, em algumas hipóteses previstas no CPM, o civil ser processado e julgado pela Justiça Militar pelo cometimento de crime militar, notadamente, quando não são atingidas às Instituições Militares e à operacionalidade das Forças Armadas.
Por derradeiro,vale sublinhar que não existem razões para desconfianças em relação a esse órgão jurisdicional especializado que, além de não se constituir em um tribunal de exceção, não foi criado para julgar os militares, mas sim os crimes militares, os quais podem ser praticados, inclusive, pelos civis.
Leia mais.
JusNavigandi/montedo.com

3 respostas

  1. Convenhamos que os países usados como exemplos (Portugal, Argentina, México e Paraguai) não servem de referência para nada.
    Como funciona nos EUA? Um civil que cometa um crime dentro de uma base militar americana é julgado por quem?

  2. Justiça militar? Não me faça rir. Isso existe? POde até ser militar, mas jamais justiça, neste país onde existem duas espécies de militares e, também, dois julgamentos diferentes para os mesmos. Talvez a daqui mais 500 anos.

    SGT major

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